Opinião
O modelo e a realidade
A coluna bimestral de Jerson Kelman
Em meus tempos de Aneel participei de muitas discussões no Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) sobre o trade-off entre segurança energética e modicidade tarifária. Tinha preocupação com o efeito retardado sobre as tarifas dos despachos de térmicas para reforçar a segurança, mas fora da ordem do mérito econômico. Por outro lado, sabia, é claro, que a energia mais cara é a que não existe. O problema é que não tínhamos uma métrica que permitisse estabelecer o custo da precaução do CMSE que o fazia tomar decisões ad hoc. Brincava, às vezes, dizendo que o princípio da precaução deveria ser usado com precaução. Passados diversos anos, o modelo Newave passou a considerar a aversão ao risco do CMSE no cálculo do Preço de Liquidação de Diferenças (PLD). Trata-se de importante aperfeiçoamento do modelo.
É bom que o consumidor conheça o custo da dose extra de segurança energética, agora perfeitamente perceptível, devido à elevação do PLD. Mas não adianta informá-lo de que deveria ter economizado energia meses atrás, quando o PLD estava alto e ele não sabia. Daí a importância das bandeiras tarifárias. Quando estiverem funcionando, o consumidor sentirá no bolso a eventual escassez de energia barata ainda a tempo de diminuir o consumo. Trata-se de importante aperfeiçoamento regulatório.
Aperfeiçoamentos do modelo ou da regulação não devem ser vistos como ”provas” de que o previamente existente era defeituoso. No entanto, observa-se no setor elétrico alguma hesitação em identificar imperfeições, tanto num caso quanto no outro. Por exemplo, no início de 2013 a PSR constatou significativa discrepância entre o que dizia o modelo e o que se observava no mundo real (Energy Report, edição especial, janeiro 2013).
Essencialmente, se alguém simulasse a evolução dos reservatórios ao longo de 2012, respeitando a energia de fato gerada em cada mês pelo bloco hidráulico e registrada pelo ONS, concluiria que o armazenamento no fim do ano deveria ser maior do que de fato era. Dito de outra maneira, aparentemente o modelo subestima a quantidade de água que deve passar pelas turbinas para produzir energia. O ONS estudou o assunto e também encontrou uma discrepância, embora de menor magnitude.
Há diversas hipóteses para o fenômeno, todas merecendo investigação e, se for o caso, aperfeiçoamento. Algumas pressupõem imprecisão de parâmetros e outras, de modelagem. Três delas me parecem mais plausíveis: (a) um erro na estimação dos volumes afluentes devido à modificação, ao longo das décadas, das curvas cota-área-volume de alguns reservatórios, por efeito do assoreamento nas franjas do reservatório (não apenas no volume morto); (b) um erro na estimação dos volumes defluentes devido à modificação das perdas energéticas ao longo do conduto forçado e grupo turbina-gerador; (c) a operação para atendimento de restrições locais na vida real seria diferente da suposta pelo modelo (por exemplo, o deplecionamento para manutenção de volume de espera para amortecimento de cheias ou de vazão mínima no trecho a jusante).
A Resolução Conjunta nº 03-2010 Aneel/ANA dava prazo até agosto de 2012 para atualização das curvas cota-área-volume de reservatórios que nessa data tivessem dez ou mais anos de operação. Todavia, os agentes se queixam da inexistência de norma com detalhes sobre como cumprir a determinação. Pena, porque, se o trabalho tivesse sido concluído, saberíamos se a hipótese “a” é ou não verdadeira.
A recente Resolução Aneel 583 (outubro/2013) estabelece os procedimentos para avaliação da potência de cada usina, mas não da produtividade. Penso que a agência deveria avaliar se há condição técnica para mensuração in loco da relação entre descarga turbinada e potência, para diferentes condições de queda bruta. Caso haja, será possível testar a hipótese “b”.
Sobre a hipótese “c”, o setor elétrico deveria realizar investimentos fora de sua competência estrita, com o objetivo de diminuir o custo de operação do sistema interligado em benefício dos consumidores. Por exemplo, pequenas obras a jusante de Sobradinho para viabilizar a diminuição permanente da vazão mínima defluente.
A coluna de Jerson Kelman é publicada a cada dois meses
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