Opinião
O Real e o imaginário
Voluntarismo estatístico está na base da MP579 e precisa ser enfrentado para que investidores voltem a ter segurança no setor elétrico
Existem estudos que usam a estatística para estabelecer alguma relação entre variáveis propondo uma teoria que facilite o entendimento de um processo muito mais complexo. Por exemplo, suponha que se queira relacionar o grau de urbanização à mudança de temperatura média de uma cidade. É razoável supor que quanto mais dotada de edificações, vias asfaltadas e trânsito, uma cidade possa registrar temperaturas crescentes. Alguma equação linear poderá traduzir essa intuitiva dependência. Uma nuvem de pontos ficará no entorno de uma reta e alguém vai poder formular uma teoria que confirma o que é intuitivo.
Entretanto, algumas cidades podem ter preservado parques e florestas e serão representadas por pontos que ficarão afastados da reta. Ou seja, a relação linear é apenas uma média e ninguém vai negar que uma cidade tenha uma situação que foge dessa aproximação. Mas, suponha que alguém queira obrigar a cidade a “se enquadrar” nessa teoria média. Seria uma espécie de ditadura da teoria sobre a prática.
Por incrível que pareça, o setor elétrico acaba de sofrer esse voluntarismo estatístico por conta da MP 579/2012, transformada na lei 12.783/2013. Esse bizarro exercício foi praticado na determinação de custos de operação e manutenção e no cálculo do Valor Novo de Reposição descrito em nota técnica da EPE[1].
Voltemos ao ano de 2012. A ideia de reduzir tarifas é precedida por uma forte campanha da FIESP[2] associando a falta de competitividade da indústria às altas tarifas de energia elétrica. A campanha acusava exclusivamente a amortização de ativos de usinas antigas.
Colocar a culpa da falta de eficiência da indústria brasileira na energia é um exagero. Se fosse incontestável, as indústrias do Japão e da Itália estariam falidas, pois pagam caro por sua energia. A campanha era dos setores eletrointensivos. Mas a tese é falsa? Não! Parte significativa de ativos de usinas hidroelétricas já estava amortizada e os preços praticados não refletiam isso.
Entretanto, e parece que todos esqueceram, o modelo tinha se transmutado de serviço pelo custo para preço da energia em 1995 e não foi alterado na reforma de 2004. Nessa configuração nem é correto se referir ao preço do MWh como “tarifa”. Na realidade, quem escolheu a desvinculação do nível de preço de geração do estágio de amortização das usinas foi o próprio governo com o apoio de toda a indústria. Portanto, a FIESP, talvez sem perceber, reclama do próprio modelo e, ironicamente, da própria escolha.
Nessa campanha, para mostrar o alto custo das usinas antigas, a federação “criou uma usina de referência a partir dos dados públicos dos leilões de Jirau, Sto. Antônio, Belo Monte e Teles Pires”. Afinal, como usinas novas podem ter preços comparáveis? Bem, segundo dados atualizados sobre esses projetos, a tabela abaixo mostra o custo médio por kW instalado dessas usinas.
As usinas antigas da Eletrobras atingidas pela medida provisória 579 são: Marimbondo, Porto Colômbia, Estreito, Funil, Furnas, Corumbá, Paulo Afonso I, II, II e IV, Moxotó, Itaparica, Xingó, Piloto, Araras, Funil, Pedra e Boa Esperança. Elas somam 13.800 MW. Se fossem construídas hoje com o custo médio dos exemplos da FIESP custariam R$ 50.442.138,87.
De acordo com informações públicas da Eletrobras[3], o valor contábil da indenização que quitaria os investimentos dessas usinas seria R$ 13.226.000,00. Portanto, sem alterar a legislação e principalmente sem modificar o manual de contabilidade do setor, 74% do investimento total já teria sido pago pelos consumidores. A tarifa média das usinas antigas poderia ser reduzida em aproximadamente 70% e o valor final cairia para 30% dos R$ 90,98/MWh = R$ 27,30/MWh.
Apesar disso, apenas 44% dos 13 bilhões foram reconhecidos. Subestimando também os custos de O&M, estava claro que a promessa de redução ultrapassava a possível. A semelhança da metodologia da nota técnica e a campanha da FIESP é, no mínimo, um sintoma intrigante. Por questão de espaço, vamos examinar apenas um aspecto do estudo, mas deixando claro que tudo deveria ser investigado.
Não há duas hidroelétricas semelhantes. Querer enquadrar seus custos a uma teoria geral pode ser aceitável para estudos prospectivos, mas não para impor custos em substituição aos registrados. Como exemplo, a teoria que determina o VNR[4] das turbinas Kaplan é um caso evidente. Foi montado um banco de dados a partir das usinas abaixo, algumas em construção e todas muito diferentes entre si.
Já é estranho usar dados de usinas novas para avaliar custos de usinas antigas, construídas em outras épocas tecnológicas. Como se não bastasse, no gráfico, são visíveis os erros em relação às próprias usinas do banco de dados. O exemplo marcado com o circulo vermelho apresenta um desvio negativo de R$ 25.000,00/MW/rpm 0,5. Isso significa um viés de -100% em uma usina do próprio banco de dados. O circulo azul mostra um caso onde o custo é sobrestimado em 60%.
Sob essa metodologia, as usinas escolhidas como exemplos na campanha da FIESP certamente não passariam pelo VNR. Seria essa uma das notas que não passaram pela diretoria da ANEEL[5]?
O artigo não pretende lamentar o caso da Eletrobras. A empresa já foi duramente atingida e as sequelas já são conhecidas por todos. A intenção é propor uma reflexão sobre a regulamentação de um setor que necessita de fornecer segurança para investidores. É possível manter uma metodologia contestável na sua base e, além disso, com evidentes erros? Que segurança tem um investidor que percebe que custos reais, auditados, constantes em balanços e aprovados por acionistas possam ser negados por um estranho voluntarismo estatístico?
Roberto Pereira d’Araujo é diretor do Ilumina – Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético
A coluna de Roberto Pereira d’Araujo é publicada a cada dois meses
[1] EPE-DEE-RE-092/2012-r1, “Cálculo do Valor Novo de Reposição – VNR de Empreendimentos de Geração de Energia Elétrica Metodologia, Critérios e Premissas Básicas”
[2] Energia a preço justo – FIESP
[3] Proposta da Administração – Eletrobras – 1600 AGE 2012
[4] Valor Novo de Reposição – Um projeto básico em substituição à usina real.
[5] Como declarou o Dr. Edvaldo Alves Santana à revista Época (07/02/2014)