Opinião
A natureza jurídica das cláusulas de take-or-pay em contratos de gás natural
Vendedores utilizam-se de artifícios para descaracterizar e camuflar a cláusula de take-or-pay nos contratos de compra e venda de gás natural
No início de cada ano, as distribuidoras de gás canalizado apuram os volumes contratuais não consumidos por seus usuários no ano anterior. Isso ocorre em consequência de uma cláusula contratual que obriga o usuário a consumir o volume estipulado até uma determinada data, sob pena de pagar pelo volume não consumido.
Esse mecanismo contratual recebeu o nome de take-or-pay.
Na década de 1960, as oscilações na demanda por gás natural geravam dificuldades financeiras para seus produtores. A demanda pelo gás aumentava substancialmente durante os meses de inverno e diminuía nos meses mais quentes. Assim, para lidar com os picos de inverno, os compradores adquiriam uma grande quantidade de gás dos produtores.
Além disso, os compradores exigiam dos produtores a dedicação exclusiva dos reservatórios por meio de contrato de compra de gás. No entanto, os compradores não estavam obrigados a comprar gás desses mesmos produtores. Durante períodos de baixa demanda, os compradores adquiriam menos, consequentemente, impossibilitavam o produtor de vender o gás para outros compradores. Em razão da cláusula de dedicação exclusiva, os produtores suportavam a perda de receita da venda de gás.
Em decorrência do prejuízo sofrido, era comum os produtores não conseguirem retomar a exploração e a produção dos reservatórios.
Como forma de proteção, os produtores buscaram refúgio na cláusula take-or-pay. Esse mecanismo exigia que o comprador pagasse uma quantidade mínima de gás a cada período. E caso o comprador pagasse mais gás do que consumia, ele teria o direito de levar esse gás no futuro, sem nenhum custo.
A cláusula take-or-pay garantia ao produtor uma receita contínua, independentemente da oscilação da demanda do mercado, em compromisso de longo prazo, com um único comprador.
Tendo destinado o gás contratualmente, era importante para o produtor ter alguma garantia de recuperar seu investimento. Sem a garantia de um fluxo de caixa mínimo, os produtores não iriam comprometer suas reservas com um único comprador em longo prazo.
Uma cláusula típica de take-or-pay especifica uma quantidade mínima anual de gás, pelo qual o produtor será remunerado. A quantidade mínima é tipicamente uma fração da quantidade de gás dedicada ao contrato. Caso o comprador deixe de retirar a quantidade mínima anual, o comprador deverá pagar uma quantidade especificada. Esse pagamento é equivalente ao valor da diferença entre a quantidade mínima anual e o valor consumido durante o ano.
Outro termo tradicional no contrato entre produtor e comprador é a previsão de recuperação da quantidade paga e não retirada, que permite ao comprador recuperar, sem pagamento, a quantidade de gás paga e não retirada.
Três conceitos regem a recuperação
1º O Comprador pode recuperar somente depois de pegar a quantidade mínima do ano.
2º A quantidade de recuperação é determinada pelo preço de contrato do gás no momento da recuperação.
3º O direito de recuperação do comprador pode ser limitado no tempo, conforme definido no contrato. Caso o comprador não recupere dentro do prazo, ele perde o direito de recuperação e ao vendedor é permitido manter os pagamentos efetuados. Alguns contratos permitem que o comprador recupere durante a vigência do contrato. Outros exigem que o vendedor devolva os pagamentos pendentes no final do contrato.
No Brasil, a cláusula take-or-pay é empregada indiscriminadamente em todos os contratos de compra e venda de gás natural, em contratação de curto (1 a 2 anos) ou longo prazos (3 a 5 anos).
A Lei nº 10.312, de 27 de novembro de 2001[i], que dispõe sobre a incidência das Contribuições para o PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social nas operações de venda de gás natural e de carvão mineral, definiu o take-or-pay como sendo:
Art. 1º Ficam reduzidas a 0 (zero) as alíquotas da Contribuição para o PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) incidentes sobre a receita bruta decorrente da venda de gás natural canalizado, destinado à produção de energia elétrica pelas usinas integrantes do Programa Prioritário de Termoeletricidade (PPT). (Redação dada pela Lei nº 12.431, de 2011).
§1º O disposto no caput alcança as receitas decorrentes da venda de gás natural canalizado, destinado à produção de energia elétrica pelas usinas termoelétricas integrantes do PPT. (Incluído pela Lei nº 12.431, de 2011).
§2º As receitas de que tratam o caput e o § 1o referem-se à cadeia de suprimentos do gás, abrangendo o contrato de compra e venda entre a supridora do gás e a companhia distribuidora de gás estadual, bem como o contrato de compra e venda entre a companhia distribuidora de gás estadual e a usina. (Incluído pela Lei nº 12.431, de 2011).
§3º Nos contratos que incluem compromisso firme de recebimento e entrega de gás, nos termos das cláusulas take or pay e ship or pay, a alíquota 0 (zero) incidirá sobre a parcela referente ao gás efetivamente entregue à usina termelétrica integrante do PPT, bem como sobre as parcelas do preço que não estiverem associadas à entrega do produto, nos termos das cláusulas take or pay e ship or pay. (Incluído pela Lei nº 12.431, de 2011).
§4º Entende-se por cláusula take or pay a disposição contratual segundo a qual a pessoa jurídica vendedora compromete-se a fornecer, e o comprador compromete-se a adquirir, uma quantidade determinada de gás natural canalizado, sendo este obrigado a pagar pela quantidade de gás que se compromete a adquirir, mesmo que não a utilize. (Incluído pela Lei nº 12.431, de 2011). (grifo nosso)
§5º Entende-se por cláusula ship or pay a remuneração pela capacidade de transporte do gás, expressa em um percentual do volume contratado. (Incluído pela Lei nº 12.431, de 2011).
Art. 2º - Ficam reduzidas a zero por cento as alíquotas das contribuições referidas no art. 1o incidentes sobre a receita bruta decorrente da venda de carvão mineral destinado à geração de energia elétrica.
Art. 3º -A Secretaria da Receita Federal poderá estabelecer normas operacionais destinadas ao controle do cumprimento do disposto nesta Lei, inclusive mediante exigência de registro especial de vendedores e adquirentes.
(...)
O § 4o do Art. 1º mencionou a cláusula take-or-pay como sendo uma disposição contratual, na qual o vendedor compromete-se a fornecer, e o comprador compromete-se a adquirir uma certa quantidade de gás natural. E, ainda, o comprador está obrigado a pagar pela quantidade de gás que se comprometeu a adquirir, mesmo que não a utilize.
No Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o Senhor Relator entende que:
“A previsão de consumos mínimos mensais é a denominada cláusula take-or-pay, pegue ou pague (fs. 18 e 21, cláusula quinta), comum no contrato de fornecimento de gás.”
(TJ-SP - EMBDECCV: 00089921820088260309 SP 0008992-18.2008.8.26.0309, Relator: Hamid Bdine, Data de Julgamento: 04/02/2014, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/02/2014)
Para a maioria das pessoas, inclusive os nossos Tribunais, o take-or-pay é equivalente ao consumo mínimo contratual.
A definição do take-or-pay é bem mais complexa. No portal “Dicionário do Petróleo em Língua Portuguesa”[ii] define-se esse termo como:
Take Or Pay (TOP).
Retirada ou pagamento pelo gás natural industrial contratado (acertado), em respeito à tolerância contratual.
→ Nesta cláusula contratual, estabelece-se a obrigação de o comprador pagar o preço acordado para a compra do gás e para a quantidade especificada, quer o comprador o retire ou não. Já a cláusula take and pay obriga o comprador a retirar e a pagar o gás, e, se não o retirar, incorre em penalidades conforme estabelecido no contrato.
Na citação acima, estabelece-se que o comprador está obrigado a retirar a quantidade contratada e, se não retirar, paga pela quantidade não retirada.
A referida definição trouxe outro mecanismo importante, a “cláusula take-and-pay”. Esse mecanismo obriga o comprador a retirar e a pagar o gás. Caso o comprador não retire, incorre em penalidades conforme estabelecido no contrato.
O artigo da Business Day[iii] trata da diferença entre o take-or-pay” e take-and-pay da seguinte forma:
Take-and-pay clauses in contrast to take-or-pay clauses require that the buyer takes delivery and pays for the quantified goods. The buyer does not have the right to refuse to take the minimum contracted quantity of such goods and still make payment. The makeup principle also does not apply in take-and-pay circumstances. It, therefore, suffices to state that where a take-and-pay clause is applicable, the inability or refusal of the buyer to take delivery of the goods would amount to a breach of contract for which the seller could claim damages, so care must be taken to ensure the take-or-pay provision is not drafted in a manner in which it could be interpreted as a take-and-pay provision so that the clause is not deemed a penalty and rendered unenforceable.
Na citação supra, as cláusulas take-and-pay exigem que o comprador aceite a entrega e pague pelos bens quantificados. Nessa modalidade, o comprador não tem o direito de recusar a pegar a quantidade mínima contratada. Portanto, a recusa do comprador em aceitar a entrega dos produtos equivaleria a uma quebra de contrato, passível de penalidades, conforme estabelecido no contrato.
Esse mecanismo não é empregado em contratos de compra e venda de gás natural.
Sobre a utilização do mecanismo de take-or-pay, o Diretor Geral da ANP, no Despacho nº 562[iv], em 11 de junho de 2008, publicado no Diário Oficial da União, em 12/6/2008, esclarece:
O DIRETOR-GERAL da AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS – ANP, no uso de suas atribuições legais, tendo em vista a Resolução de Diretoria nº 385, de 4 de junho de 2008, nos termos do art. 8º, incisos I e V, da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, consoante o Processo ANP nº 48610.013838/2007-96, e considerando que:
A cláusula de Take-or-Pay, integrante dos contratos de compra e venda de gás natural, determina a regra pela qual o comprador/importador assume a obrigação de pagar um percentual mínimo sobre a quantidade total contratada de gás natural, em um período de apuração especificado, independentemente do seu efetivo consumo ou da sua internalização neste ínterim, objetivando-se assegurar o retorno mínimo dos investimentos realizados na exploração dos campos e tratamento do gás natural ao vendedor/fornecedor do energético;
A cláusula de Make-up Gas, integrante dos contratos de compra e venda de gás natural, outorga, sob determinadas condições, o direito de recuperação futura de quantidades de gás natural não retiradas, mas pagas pelo comprador/importador em virtude da cláusula de Take-or-Pay;
A cláusula de Ship-or-Pay estabelece a regra de que o agente que contrata capacidade de transporte junto ao transportador para escoar gás natural é obrigado a pagar por ela ainda que não a utilize, objetivando-se garantir o retorno dos investimentos realizados em instalações de transporte dutoviário de gás natural;
As cláusulas de Take-or-Pay e Ship-or-Pay são consideradas como os principais mecanismos contratuais de repasse dos compromissos assumidos ao longo da cadeia de valor do gás natural, assegurando-se, por meio delas, um fluxo de caixa mínimo para os agentes fornecedores/exportadores e transportadores de gás natural, respectivamente, com o propósito de garantir um retorno mínimo aos investimentos, mitigar riscos e administrar incertezas inerentes à indústria gasífera; e Inexistem instrumentos legais que definam e regulem, no País, os conceitos de Take-or-Pay, Make-up Gas e Ship-or-Pay e reconheçam a importância destas cláusulas contratuais para a indústria gasífera, bem como garantam o respaldo legal necessário aos bancos comerciais para a aprovação das operações cambiais referentes ao pagamento dos valores a elas correspondentes; torna público o seguinte ato:
Art. 1º É atestado, para os devidos fins, que as cláusulas de Take-or-Pay, Make-up Gas e Ship-or-Pay representam práticas usuais adotadas no âmbito da indústria do gás natural, no Brasil e no exterior.
Art. 2º Este Despacho entra em vigor na data de sua publicação.
HAROLDO BORGES RODRIGUES LIMA Publique-se:
MURILO MOTA FILHO Subsecretário Executivo
Em artigo[v] de 2014, explanei sobre a natureza jurídica da clausula de take-or-pay nos contratos de compra e venda de gás. À época, concluí que dependendo da redação dada na cláusula iria definir a sua natureza jurídica, ou seja, penalidade ou indenização.
Nesse sentido, o artigo dos Doutores Nancy Gombossy de Melo Franco & Fernando Medici Junior, intitulado “A Cláusula Take or Pay”[vi]
“Quanto à natureza jurídica da obrigação relacionada à cláusula de take or pay, a doutrina e a jurisprudência divergem quanto à sua classificação — (a) se seria cláusula penal, i.e., uma obrigação secundária de indenizar as perdas e danos resultantes do descumprimento da obrigação primária assumida pelo devedor, que seria de obrigatoriamente consumir uma data quantidade mínima de um produto, ou (b) se seria uma obrigação primária de pagar um certo preço pela simples disponibilização do produto para o seu consumo, independentemente de quantidade mínima, que não seria obrigatória, mas apenas facultativa.”
Obrigação de indenizar vs. Obrigação de pagar. As primeiras decisões que analisaram a natureza da cláusula take or pay foram proferidas pelas cortes inglesas e norte-americanas, como decorrência natural de ter sido nessas jurisdições que o mecanismo foi criado e passou a ser implementado em maior escala.
Analisando a gênese dos referidos contratos, aquelas cortes levaram em consideração que, se o objetivo da cláusula de take or pay é assegurar a disponibilidade de um certo produto ou serviço, mediante o pagamento de um determinado valor, independentemente do seu efetivo consumo ou utilização, então:
- a obrigação assumida pelo devedor por meio da referida cláusula seria alternativa, já que possui ele a opção (e não a obrigação) de consumir o produto na quantidade que lhe foi assegurada contratualmente, desde que pague o valor ajustado contratualmente pela opção de consumo a menor; e
- por não ser obrigatório o consumo integral do valor assegurado, o consumo a menor não poderia ser considerado inadimplemento, de forma que o valor pago em decorrência desse consumo a menor não teria natureza indenizatória, sendo em verdade um preço pago pela disponibilidade que lhe foi assegurada do produto.”
A citação acima expõe outra natureza jurídica da cláusula de take-or-pay, a caracteriza como obrigação alternativa do comprador. Esse é o “exercício regular do direito de adquirir uma quantidade menor desse produto, o que pode lhe ser conveniente por diversas razões econômicas ou de mercado, mesmo mediante o pagamento do valor estabelecido na cláusula de take or pay.”.[vii]
Nos contratos de compra e venda de gás natural, os vendedores utilizam-se de artifícios para descaracterizar e camuflar a cláusula de take-or-pay. Assim, a interpretação literal da cláusula explicitará a exteriorização da vontade do vendedor e consequentemente a sua natureza jurídica.
Cid Tomanik é consultor jurídico e regulatório em Energia e utilities do Tomanik Martiniano Advogados
[i]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10312.htm#:~:text=LEI%20No%2010.312%2C%20DE,natural%20e%20de%20carv%C3%A3o%20mineral. – Acesso em: 19/1/2023.
[ii] https://dicionariopetroleoegas.com.br/dictionary/take-or-pay-top/ – Acesso em: 19/1/2023.
[iii] https://businessday.ng/news/legal-business/article/negotiating-take-or-pay-clauses-in-long-term-contracts-in-nigeria/ – Acesso em: 19/1/2023.
[iv] https://atosoficiais.com.br/anp/despacho-n-562-2008?origin=instituicao – Acesso em 19/1/2023.
[v] https://www.conjur.com.br/2014-fev-17/cid-tomanik-redacao-contratual-define-natureza-clausula-take-or-pay – Acesso em: 19/1/2023.
[vi] https://direitoagrario.com/a-clausula-take-or-pay/ – Acesso em: 19/1/2023.
[vii] https://direitoagrario.com/a-clausula-take-or-pay/ – Acesso em: 19/1/2023.