Opinião

Os desequilíbrios do setor elétrico brasileiro

Artigo de Luciano Losekann e Ronaldo Bicalho, do GEE/IE/UFRJ

Por Redação

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A crise do setor elétrico brasileiro tem origem em fatores conjunturais e estruturais. Para se entender essa crise e, mais do que isso, identificar seus desdobramentos não só para o setor, mas para o país, é necessário não se deixar levar pelo recurso fácil e cômodo das explicações recorrentes às ausências de capacidade gerencial ou de chuvas; mas mirar as causas estruturais dessa crise e, principalmente, os desequilíbrios do modelo elétrico brasileiro.

Três desequilíbrios caracterizam a situação do setor elétrico brasileiro atual. O primeiro desequilíbrio ocorre na gestão dos reservatórios hidrelétricos. Políticas de curto prazo equivocadas e antecipação, por razões técnicas, econômicas e político-institucionais, do esgotamento de sua dotação histórica de recursos hídricos se entrelaçam na explicação dos crescentes desequilíbrios apresentados pelo setor.

O setor elétrico brasileiro foi construído a partir da exploração intensiva do potencial hidráulico do país. A pedra angular que alavancou essa exploração, dando a ela consistência e amplitude, foi a gestão coordenada dos grandes reservatórios.

Construíram-se reservatórios para fazer face à intermitência das chuvas e regularizar os fluxos de geração hidrelétrica; coordenou-se a gestão dos reservatórios presentes em um mesmo rio ou bacia para aproveitar ao máximo o seu potencial; tirou-se vantagem da diversidade hidrológica existente entre as diversas bacias e regiões para explorar ao limite a capacidade dos reservatórios, regularizando em uma escala quase continental o estocástico regime pluviométrico.

Essa sofisticada gestão dos reservatórios constitui o coração do sistema elétrico brasileiro. A partir dela se articula toda a base técnica, organizacional e institucional do nosso setor elétrico. As regras de despacho, o papel das térmicas, a utilização dos modelos, a tarifação, o custo marginal, o próprio PLD, entre outros, são manifestações da natureza essencial desse setor: um setor basicamente hidráulico no qual a otimização dos reservatórios joga um papel decisivo na garantia do suprimento e na modicidade tarifária.

No entanto, transformações profundas estão em curso justamente na base de sustentação desse modelo histórico de operação e expansão do setor.

Inicialmente, os grandes reservatórios eram plurianuais. Ou seja, armazenavam água por anos. A energia armazenada nesses reservatórios excedia em muito a demanda anual de eletricidade. Nesse contexto, o recurso às térmicas era esporádico e praticamente irrelevante.Com o passar do tempo, o crescimento forte da demanda e as crescentes restrições – técnicas, econômicas, institucionais e políticas – à construção de grandes reservatórios foram reduzindo a capacidade de regularização dos reservatórios e, com isso, as térmicas passaram a atuar de forma cada vez mais constante, tornando-se cada vez mais relevantes.

Dessa maneira, a manutenção das hidrelétricas e seus reservatórios como o grande pilar de sustentação da garantia do suprimento e da modicidade tarifária para toda a demanda, com as térmicas entrando simplesmente para cobrir a falta esporádica de chuvas, foi se tornando incompatível com a evolução efetiva dos recursos.

Incompatível porque hoje a água dos reservatórios não consegue mais segurar a demanda em toda a sua amplitude. Infelizmente, este não é um dado conjuntural. Este é um dado estrutural. Portanto, parte da demanda terá de ser atendida de modo contínuo pelas térmicas. Estas térmicas não podem ser as mesmas de antes. Não podem ser aquelas concebidas para operar esporadicamente, na chamada ponta; têm de ser térmicas projetadas para operar todo o tempo; ou seja, na base.

A inadequação entre a presente estratégia de operação e expansão do setor e a evolução da sua base de recursos gera uma série de inconsistências e desequilíbrios que vai desestruturando o setor tanto em termos técnicos quanto econômicos. No caso das térmicas, o uso frequente de usinas com custo variável extremamente elevado, em alguns casos próximo a R$ 1.000/MWh, implica custos insuportáveis para o setor.

O segundo desequilíbrio da crise do setor elétrico é de natureza contratual. Uma das medidas essenciais do modelo do setor elétrico é a obrigatoriedade de as distribuidoras contratarem 100% de sua demanda, reservando ao mercado de curto prazo um papel apenas de balanço temporário. Com a negativa de empresas de renovar os contratos de concessão nas condições propostas pelo governo, parcela dos contratos de energia existente negociados em 2004 não foi recontratada. Cerca de 3,5 GW médios estão descontratados, o que representa 5% da energia consumida no Brasil. Assim, as distribuidoras têm uma exposição involuntária ao mercado de curto prazo, quando o preço de liquidação das diferenças (PLD) atinge seu valor máximo, R$ 822/MWh. Com um cálculo simples podemos estimar que, em um mês em que o PLD permaneça em seu valor máximo, o custo mensal dessa exposição é de R$ 2 bilhões!

Por fim, há um desequilíbrio financeiro, com o descolamento das receitas e dos custos setoriais. A desestruturação financeira nasce do não reconhecimento por parte do governo da redução significativa do espaço para a utilização do setor para alavancar políticas macroeconômicas de contenção de preços/inflação e/ou políticas de incentivo à competitividade.

Em um setor marcado pela perda da sua fundação de dotações naturais, a tendência não é a redução dos custos/tarifas, ao contrário, a tendência é a elevação desses custos/tarifas. Portanto, essa contenção/redução representa um sacrifício muito mais desestruturante do que em condições nas quais essas fundações estão estabelecidas e estáveis.

No difícil e incerto processo de substituição da dotação de recursos tradicionais por uma nova dotação, a desmobilização de ativos técnicos, econômicos e financeiros para a obtenção de redução de tarifas retira do setor um conjunto de recursos cruciais para coordenar e estabilizar essa substituição.

Em outras palavras, os navios são queimados no exato momento em que são fundamentais para se empreender a longa e arriscada travessia.

Nesse contexto de incertezas crescentes, o financiamento da expansão do setor torna-se naturalmente mais difícil. Com esse aumento de dificuldade, recorre-se cada vez mais aos bancos públicos e, no limite, ao Tesouro. Esse é um circuito de financiamento que, historicamente, prenunciou fortes crises estruturais, e não períodos de estabilidade. Quando o setor elétrico bate à porta do Tesouro é que o jogo está perdido, que um ciclo se encerrou e que um determinado modelo elétrico se esgotou.
                                     
Luciano Losekann é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense e pesquisador associado do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da  Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ronaldo Bicalho é professor e pesquisador do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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