Opinião
Por um plano de contingências maduro e consistente
Não é segredo que o setor de energia elétrica passa por uma crise. Atravessamos uma seca extremamente severa – em algumas regiões, a pior desde 1931, início de nosso histórico de medições. As usinas térmicas estão operando a pleno vapor, tentando preservar o máximo possível nossas combalidas reservas hidroelétricas; muitos de nossos reservatórios exibem sinais de exaustão. Em nossos cálculos, se continuarmos a viver uma seca, mesmo que leve, a probabilidade de déficit beira os 50%. A pergunta óbvia paira no ar: estamos de fato em risco de racionamento? Existirá um monstro que não vemos, ou negamos, pronto para atacar-nos e deixar-nos às escuras? Por quanto tempo, dias, meses, anos?
Antes de mais nada, é preciso refletir que o monstro oculto é sempre o mais temido. A criança que ouve o clássico “barulho dentro do armário” imagina um dragão, que a realidade mostraria ser talvez um gatinho de estimação, ou até mesmo um bichinho de pelúcia. O primeiro passo para a solução é o diagnóstico e a caracterização da ameaça. Para isso, é interessante voltar aos conceitos básicos, e lembrar que nenhum planejamento, em nenhum lugar do mundo, constrói um sistema que atenda à demanda em todo e qualquer cenário futuro. Isso seria extremamente oneroso para a sociedade, e traria um enorme impacto em um país como o nosso, que ainda luta para garantir direitos básicos como a saúde e a educação.
Nosso critério de planejamento parte da aceitação de um risco igual a 5%. Isto significa que, mesmo que todo o planejamento se cumprisse, não existisse nenhum atraso em obras e tudo corresse como esperado, deveríamos estar preparados – e preparados é a palavra-chave – para a ocorrência de uma escassez de suprimento em cinco de cada cem anos, ou, equivalentemente, em um a cada vinte anos. Não vivemos, portanto, um momento anômalo; ao contrário, vivemos uma situação prevista, decorrente da vulnerabilidade climatológica conhecida e aceita dentro dos critérios que norteiam toda a evolução de nossa oferta. Assim, se acendermos a luz do quarto da criança, o monstro do armário revela-se um robô de brinquedo cujas armas destruidoras são conhecidas, e, se o brinquedo for bem projetado, de alcance restrito.
O mesmo planejamento que trabalha com um risco meticulosamente calculado poderia – e deveria – construir também um plano de contingências, como a brigada de incêndio nos grandes prédios, o air-bag em automóveis, a saída de emergência em aviões. O impacto dos cenários críticos poderia ser controlado e mitigado por medidas calculadas e (por isso) eficazes, como uma redução de corte voluntária/induzida ou uma sinalização de preços indicativa para o consumidor (que não seja encoberta por empréstimos a serem saldados mais tarde, com juros). A capacidade de nossos técnicos é mundialmente reconhecida; não faltariam recursos para a adoção da chamada carga flexível, capaz de ajustar-se à capacidade de oferta.
É preciso diferenciar a incerteza – que pode ser medida e mitigada – do desconhecimento. A situação de escassez, quando bem administrada, não é vergonhosa; ao contrário, é perfeitamente normal. Corremos e administramos riscos em muitos aspectos de nossa vida, e o risco de abastecimento não é exceção. Por outro lado, a negação do problema e o incentivo ao aumento do consumo (sob a alegação de redução do preço, não confirmada pela realidade atual) levará ao aprofundamento ainda maior da crise. Como uma bola de neve ou um empréstimo postergado a juros altos, o corte de carga ameno e seletivo, se não realizado, acumula um perigoso aumento do déficit futuro. É importante lembrar a lição do último racionamento: um corte profundo de energia não é sinônimo, simplesmente, do desconforto de desligar um ar-condicionado ou reduzir a iluminação ambiente. Abalada a confiança no país, a indústria muda seus investimentos e meios de produção para outros lugares mais promissores; não há volta, ao menos a curto prazo. No Brasil, um país que precisa de energia para crescer, o racionamento para a indústria leva ao corte de empregos, à redução da renda e ao retrocesso.
Se agirmos a tempo, podemos minimizar o estrago. Caso contrário, poderá ser preciso cortar na carne.
Leontina Pinto é diretora executiva da Engenho Pesquisa, Desenvolvimento e Consultoria