Opinião
As redes inteligentes precisam de tarifas inteligentes
As tarifas estão no coração da regulação do setor elétrico desde (quase) sempre. Um dos problemas tradicionais é a definição do que se deve pagar por usar a rede de distribuição elétrica. O negócio da distribuição, contudo, está mudando drasticamente (como mostrado na edição de fevereiro da Brasil Energia, “A revolução das redes inteligentes”), e as tarifas devem acompanhar essas mudanças. Por que precisamos de novas tarifas? Como mostraremos, porque grande parte das hipóteses atrás das atuais estruturas tarifárias ao redor do mundo se apoiam em premissas cada vez menos aceitáveis.
Para pensar o problema, vamos nos colocar no lugar dos desenhadores de tarifas. A primeira pergunta que nos faríamos seria: quais as características dessas tarifas? Por um lado, as tarifas devem juntar recurso suficiente para pagar os investimentos na rede (que são regulados) sem permitir que as empresas exerçam poder de mercado. Achar este ponto de equilíbrio não é fácil e é apenas metade do problema: as tarifas, ademais, guiam o uso da rede. Para que tal uso seja eficiente elas devem proporcionar os sinais suficientes para coordenar as decisões tomadas do lado de fora da rede.
Visto que estamos discutindo tarifas de distribuição, essas decisões serão principalmente decisões de consumo de eletricidade entregues pelo sistema. O desenho de tarifas de distribuição precisa resolver pelo menos duas questões: (a) usos diferentes da rede pagam tarifas diferentes? e (b) por quanto tempo as tarifas serão efetivas?
A primeira questão deve levar em consideração que a localização do agente ou a capacidade que ele usa impacta diferentemente as necessidades de investimento em infraestrutura. Os encargos por capacidade são um bom exemplo para entender o problema. A rede para distribuição de eletricidade deve ser construída para atender picos de demanda. No extremo, se um agente consome eletricidade uma hora por ano, toda a rede de distribuição deve ser construída para que o agente receba os fluxos nessa hora. Nesse contexto, pagar pelo uso (serviço consumido) pode gerar grandes distorções, uma vez que diverge do custo causado ao sistema.
Para sistemas de transmissão de eletricidade, nos quais os custos fixos são bem maiores do que os custos variáveis, o problema está razoavelmente bem identificado e resolvido. A solução padrão consiste em separar as tarifas em um cargo por capacidade, que dá conta do elevado custo fixo, e um cargo por uso, que dá conta do menor custo variável – isto se chama de tarifas em duas partes.
A situação nos sistemas de distribuição é bem diferente: os cargos variáveis (por uso) são tipicamente muito maiores do que os custos variáveis. Por quê? Porque tradicionalmente se supunha que o consumo não variaria dependendo da tarifa de acesso à rede de distribuição.
Esta visão pode ser resumida na seguinte frase (caricatural): “A influência dos custos da rede é irrelevante perante as decisões do consumidor, portanto não existe lugar para a coordenação entre sinais de rede e de consumo”. Este raciocínio leva a propor soluções como as tarifas de “selo postal” ou soluções derivadas de modelos de precificação de monopólios (e.g. tarifas de Ramsey).
O
u seja, a lógica é: visto que os sinais de uso da rede não são relevantes para a coordenação das decisões de consumo, a rede pode ser considerada um monopólio isolado. Portanto, parece lógico aplicar critérios de eficiência na definição de preços de monopólio. A solução de cargos variáveis elevados é, em definitivo, um tipo de preços Ramsey: paga mais quem mais usa a rede.
Com a geração distribuída ou os equipamentos “inteligentes”, o consumo de serviços de rede deve começar a se diferenciar. O que acontece com a nova situação? Aparece o “prosumidor”: o agente que é tanto produtor quanto consumidor. Nesse caso, a primeira hipótese (os sinais de uso da rede não são relevantes), sobre a qual se constrói a lógica, se coloca sob questão.
Consideremos os problemas do “net metering”. Essa regra, que varia dependendo do país que estudemos, se reduz à ideia de permitir que os prosumidores paguem só pela energia líquida (neta) consumida. Ou seja, imaginemos que a energia é paga no final do dia. Um usuário que consome durante todo o período da manhã, e depois gera durante todo o período da tarde, pagaria zero, embora tenha usado a rede o dia todo, e essa rede tenha de ser dimensionada para o seu uso. Este tipo de incentivo é ineficiente. No entanto, as soluções existem e já foram identificadas do ponto de vista teórico. A aplicação e transição, como sempre, é complexa.
A segunda questão é: por quanto tempo as tarifas serão efetivas? No momento, as tarifas de distribuição são tarifas “hop-on/hop-off”: os custos de hoje são pagos pelos consumidores de hoje. Isso é razoável quando se supõe que o número de consumidores é estável (ou crescente). Tradicionalmente, a hipótese não era difícil de aceitar: os consumidores não tinham nenhum lugar para onde ir além da rede de distribuição.
De novo, os novos prosumidores causam uma mudança radical em relação às tarifas tradicionais. Na nova situação, a conexão à rede deveria representar um compromisso de pagar todos os custos causados.
Pensemos, para entender a nova situação, no exemplo de tarifas de acesso a uma planta de regasificação (privada). As tarifas de acesso são cobradas através da capacidade contratada, que representa um compromisso de uns 10 anos. Nesse contexto, se a demanda por capacidade de transmissão de gás for estável, então pode recolocar o gás sem perda. Se a demanda por transmissão se reduz, os agentes não deveriam abandonar o sistema sem pagar pelos custos que ocasionaram. Esta solução cresce em complexidade rapidamente quando há múltiplas instalações envolvidas. Assim, as novas tarifas de acesso à distribuição deveriam incluir, pelo menos, três elementos: (i) localização; (ii) uso do sistema (flexibilidade); e (iii) momento de entrada na rede (ou de incremento de consumo).
Para concluir: existem hipóteses básicas do desenho tradicional de tarifas de distribuição que estão sob questão. Antes, o uso do sistema de distribuição para consumir energia não era uma opção. As novas tecnologias inteligentes aumentam as opções dos agentes, mas a escolha do consumidor pode gerar grandes distorções econômicas se os incentivos estão malcolocados. Dois grupos de novos sinais são necessários: sinais para a reserva de capacidade da rede (não só do seu uso), e sinais da duração do contrato implícito na tarifa. Ou seja, as redes inteligentes precisam de tarifas inteligentes.
Michelle Hallack é Ph.D em Economia pela Universidade de Paris XI e Miguel Vazquez é Ph.D em Engenharia Industrial pela Universidade Pontificia Comillas, Madrid. Ambos são professores da Faculdade de Economia da UFF e pesquisadores
associados do GEE/UFRJ