Opinião
Reservatórios virtuais
*Marco Aurélio Tavares e Mario Veiga Pereira Como é do conhecimento geral, o Brasil tem cerca de 100 mil MW de potência instalada, dos quais a maioria (85%) é de hidrelétricas. O complemento de 15% é quase todo de termelétricas, a gás natural (cerca de 7 mil MW instalados), carvão mineral, nuclear, óleo combustível / diesel e cogeração (principalmente a biomassa de cana).
O terceiro componente é a geração eólica, hoje com algumas dezenas de megawatts, mas com forte crescimento esperado para os próximos anos. Um fato talvez menos conhecido é que a geração termelétrica não foi construída por falta de opções hidrelétricas, e sim porque a solução mais econômica para o consumidor final é ter um mix de geração hídrica e térmica. A razão é que o sistema hidrelétrico é projetado para assegurar o atendimento da demanda mesmo que ocorra uma seca comparável à pior já observada nos últimos 80 anos.
Como uma seca desta severidade é pouco provável, na maior parte do tempo as hidrelétricas podem produzir energia acima deste nível 'assegurado'. O ONS, portanto, aproveita ao máximo esta geração hídrica adicional, reduzindo a produção das termelétricas, que passam a ser utilizadas em regime de complementação à produção hidrelétrica e, dessa forma, economizam combustíveis.
Como mostra o Quadro 1, a conseqüência final desta otimização é a redução do custo da energia termelétrica para o consumidor:
Quadro 1 - Sinergia entre geração hidrelétrica e térmica
Suponha que o custo de investimento de uma termelétrica seja R$ 70/MWh, e que seu custo unitário de operação seja R$ 80/MWh. Se a usina for inflexível, isto é, tiver de produzir energia continuamente, o custo para o consumidor será a soma dos custos de investimento e operação, 70 + 80 = R$ 150/MWh. Entretanto, se a usina for flexível, ela poderá substituir sua geração pela energia adicional das hidrelétricas cerca de 60% do tempo. Neste caso, o custo médio de operação é dado pelo produto entre o custo unitário e a proporção do tempo em que a usina efetivamente está acionada.
Para o exemplo, o custo operativo médio é dado por (R$ 80 x 40%) = R$ 32/MWh. Com isso, o custo final para o consumidor passará a ser o de investimento (R$ 70/MWh] + custo médio de operação [R$ 32/MWh] = R$ 102/MWh (desprezando, por simplicidade, o custo de compra de energia das hidrelétricas, que ocorre a preços usualmente baixos). Em resumo, a flexibilidade operativa das térmicas se 'encaixa' muito bem com a variabilidade da produção hidrelétrica, com benefícios econômicos para o consumidor final.
Para alguns tipos de térmica, como usinas a óleo ou a carvão mineral perto de minas a céu aberto, é viável ter uma operação flexível. Entretanto, quando da sua inserção no mercado brasileiro, o gás natural disponível para geração térmica era o importado da Bolívia, que continha na sua contratação cláusulas pesadas de take or pay - ToP na faixa de 70% a 80%, exigindo da empresa que detinha sua comercialização no mercado brasileiro o repasse desta inflexibilidade.
Caso não haja o consumo físico do gás, o cliente necessita pagar como se tivesse consumido, e tem o direito de consumir ('make-up') em condições pré-determinadas e por um período máximo, também determinado nos contratos de suprimento de gás. Estas cláusulas, que correspondem ao pré-pagamento de uma quantidade de gás, têm como objetivo estabilizar a remuneração dos investimentos dos produtores da commodity e são usadas em muitos países com mercados de gás em maturação, onde o produtor não tem um mercado disponível para comprar seu produto em caso da não-utilização pelo comprador inicial.
Infelizmente, no caso do Brasil, para a inserção do gás natural na cadeia de produção de energia elétrica, esta cláusula de ToP reduz a flexibilidade operativa, e portanto a oportunidade de aproveitar a disponibilidade de energia hidrelétrica que é produzida acima de sua energia assegurada. Para o mesmo exemplo do Quadro 1, um ToP de 70% elevaria o custo da energia de R$ 102 para R$ 136/MWh.
A entrada do gás natural liquefeito (GNL) ofertado de forma flexível, prevista para meados de 2009, é vista com interesse pelo setor elétrico por duas razões: os navios com entrega de GNL podem ser contratados conforme as necessidades de consumo, e têm, portanto, o potencial de flexibilizar o suprimento de gás natural das termelétricas a gás; e as termelétricas podem ser localizadas relativamente perto dos principais portos de entrega do gás liquefeito, evitando assim investimentos em gasodutos.
Desta forma, o custo final desta energia para o consumidor pode se tornar mais atrativo. Neste caso teoricamente o mercado secundário do GNL flexível seria o próprio mercado internacional de gás liquefeito, que pode absorver a carga contratada aqui e não utilizada pela disponibilidade secundária de energia hídrica.
Entretanto, embora o GNL possa propiciar a flexibilidade no suprimento de gás às térmicas, uma característica importante é que seu preço depende fortemente da antecedência do pedido. Por exemplo, uma encomenda de gás liquefeito feita com um ano de antecedência poderia ter um preço fixo, pois o vendedor teria a possibilidade de contratar os hedges mais adequados. Já uma encomenda feita com três semanas de antecedência possivelmente teria um preço variável, associado ao custo de oportunidade do deslocamento do gás em relação ao seu mercado de destino (por exemplo, Henry Hub), acrescido de uma 'taxa de urgência'.
A antecedência na encomenda de GNL, desejável para reduzir o custo de suprimento de gás das térmicas, é incompatível com a regulamentação atual da operação do sistema, pela qual o ONS tem a prerrogativa de acionar as térmicas sem aviso prévio. À primeira vista, a única maneira de conciliar este conflito entre antecedência na encomenda do combustível e incerteza quanto ao momento de despacho da térmica seria a construção de reservatórios físicos de armazenamento de GNL.
Porém, o custo destes reservatórios seria muito elevado, pois teriam de armazenar gás suficiente para alguns meses de geração térmica. É neste ponto que surge o conceito de reservatório virtual: em vez de armazenar o gás em um reservatório físico, para posteriormente gerar a energia elétrica, a idéia é pré-gerar esta energia tão logo chegue as cargas previamente programadas de GNL e armazenar esta energia elétrica sob a forma de créditos de energia nas hidrelétricas do sistema.
Os passos a seguir descrevem uma versão simplificada do esquema de reservatório virtual:
(1) Suponha que acabou de chegar um navio de GNL suficiente para abastecer 2 mil MW médios de geração térmica por uma semana. Suponha também que ONS anunciou que pretende despachar 50 mil MW médios de hidrelétricas na próxima semana.
(2) A termelétrica notifica o ONS que pretende pré-gerar 2 mil MW médios; o ONS reprograma a geração hídrica para 48 mil MW médios, para acomodar a pré-geração da térmica.
(3) O ONS contabiliza o esvaziamento dos reservatórios como se as hidrelétricas tivessem gerado os 50 mil MW programados. Em outras palavras, o volume físico de água armazenado nos reservatórios será maior do que o volume contábil armazenado.
(4) A diferença entre o armazenamento físico e o contábil (que corresponde aos 2 mil MW médios pré-gerados) é creditada à térmica como uma opção de energia ('call option'), que pode ser exercida a qualquer momento.
(5) Por fim, suponha que algum tempo depois o ONS anuncia que pretende despachar 48 mil MW médios hidrelétricos e 2 mil MW médios térmicos.
Como mencionado, a térmica pode decidir gerar fisicamente (se, por coincidência, um novo 'trem' de GNL tiver recém-chegado) ou exercer a opção de usar a energia armazenada. Neste caso, a térmica faz o procedimento inverso do item (2): notifica ao ONS que vai utilizar sua energia armazenada, e o ONS reprograma a geração hídrica para 50 mil MW médios.
Naturalmente, o procedimento envolve aspectos mais complexos e não abordados neste artigo, como restrições de transmissão, gerência do armazenamento das diversas hidrelétricas, entre outros. Porém, em resumo, a utilização do armazenamento virtual permite, através de uma operação de swap, acomodar a necessidade de encomendar com antecedência o GNL sem afetar a política ótima de operação do sistema, propiciando assim a entrada do suprimento de gás flexível e a possibilidade de elaborar estratégias para reduzir seu custo.
Ela também dará um incentivo importante para o melhor uso da infra-estrutura atual de produção e logística de gás. Por exemplo, se o consumo de gás de uma distribuidora diminui no fim de semana, ela pode aproveitar a 'folga' de produção e transporte para oferecer o combustível a preços reduzidos para as térmicas, que o armazenariam como energia nos reservatórios das hidrelétricas. Finalmente, seria também possível aproveitar os períodos conjunturais de redução de preços de GNL nos mercados internacionais para comprar e 'estocar' o gás.
Este esquema é análogo às ofertas de tarifas reduzidas de hotéis e aviões para fins de semana em diversas cidades do Brasil, como São Paulo. É interessante observar que já existe no setor elétrico brasileiro um reservatório virtual em operação. No chamado Acordo de Recomposição de Lastro, a Petrobras gera energia nas térmicas da região Sudeste e a armazena como créditos de energia no reservatório de Sobradinho, no Nordeste.
O esquema descrito neste texto é uma extensão deste conceito para todas as térmicas, todas as hidrelétricas e com flexibilidades adicionais. Mais recentemente, a Aneel abriu a possibilidade de uso deste conceito na Resolução Normativa 237/2006. Finalmente, o maior risco para o produtor térmico é o vertimento do reservatório físico: neste caso, a energia hidrelétrica 'contábil' será vertida antes da energia 'física'.
Portanto, é necessário uma gestão cuidadosa dos estoques de energia armazenada nestes reservatórios virtuais. Esta gestão pode ser feita através de modelos de otimização probabilística semelhantes a modelos de gestão de portfólio da área financeira. Estão sendo realizados estudos para verificar a viabilidade da implementação dos reservatórios virtuais e simular seu desempenho.
Em fim, o que teremos que saber aproveitar nos próximos anos, em que teremos um cenário de escassez de recursos energéticos, é como melhor utilizar nossa infra-estrutura gasífera e hidrelétrica para dar segurança no abastecimento e otimizar os custos para a sociedade brasileira. Como a história nos ensinou, é nas crises que se aprende a melhor gerenciar nossos poucos recursos disponíveis de forma mais inteligente e criativa.
*Marco Aurélio Tavares é da Gás Energy Assessoria Empresarial e Mario Veiga Pereira é da PSR