Opinião
Sem preconceito contra o Repetro
Por Rodrigo Jacobina
Em recentes reportagens divulgadas na mídia nacional, desenhou-se um retrato de operações que supostamente buscam os mecanismos legais do Repetro com o alegado objetivo exclusivo de, ilegalmente, reduzir a carga tributária. A tônica adotada para tratar do tema acabou sendo generalista, impedindo o alcance do contexto como um todo.
Em primeiro lugar, há que se recordar que o Repetro foi concebido quando da aprovação da Lei do Petróleo (Lei Federal 9.478/97) e hoje se encontra regulado pelo Decreto 6.759/2009 e pela Instrução Normativa da Receita Federal 844/2008 e suas alterações posteriores. Trata-se de regime especial aduaneiro, no qual os tributos incidentes sobre a exportação e a importação de máquinas e equipamentos destinados às atividades de pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e gás natural são elididos. Ou seja, um regime excepcional de desoneração tributária que beneficia operações de comércio exterior envolvendo bens destinados às atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural.
É um regime fiscal de benefício, sim, mas não de um desarrazoado benefício fiscal e sim de um projeto no qual o governo federal renuncia à receita tributária com vistas a um incremento da produção e a um desenvolvimento da indústria como um todo. Muito do que foi investido no setor acabou sendo possibilitado pelo Repetro. Os benefícios fiscais não são, ao contrário do que muitos pensam, favores concedidos sem justificativa ou motivo. Se o forem, há grave falta, que não há de ser tolerada pelo sistema jurídico de nenhum país do mundo.
No caso do Repetro, como antes dito, a justificativa existe e, decerto, cumpriu e cumpre seu objetivo de permitir que a tecnologia receba a devida oxigenação e o devido intercâmbio, sem prejuízo da exploração e produção corrente. Cumpre também o objetivo de permitir a redução de custos diretos nas atividades alvo, liberando recursos para maiores investimentos.
Apenas para ilustrar, segundo dados do IBGE, em 2000, logo após a inauguração do novo marco regulatório para a exploração e produção de petróleo e gás natural, dada com a aprovação da Lei do Petróleo, o setor contribuía com, aproximadamente, 0,65% do PIB para a carga tributária nacional. Em 2003, esse percentual passou para 1,68%, e em 2009, mesmo após a crise de setembro de 2008, o percentual de contribuição se estabilizou em 1,05%.
O crescimento médio da arrecadação tributária no setor – como um todo, envolvendo não só a exploração, mas também o refino e a distribuição – varia de R$ 11,6 bilhões em 1996 para R$ 46,9 bilhões em 2004. Esse crescimento é verificado também quando o setor é comparado com os demais setores da economia, vez que experimenta ao longo desses anos um aumento de cerca de 19% em sua arrecadação, enquanto a média nacional, englobando todos os setores da economia, fica em, aproximadamente, 14%. Se segregarmos exploração e produção de refino e distribuição, teremos um crescimento da participação na arrecadação tributária nacional de 3,86% em 1996 para 10,32% em 2004.
O Repetro, portanto, representa uma renúncia fiscal que se justifica na condição de um dos grandes catalisadores do crescimento do setor de petróleo e gás natural, mais especialmente, no crescimento das atividades de exploração e produção. Assim como inúmeros outros regimes especiais aplicáveis ao comércio exterior, tais como o drawback ou mesmo o sistema de benefício da Zona Franca de Manaus, o Repetro é dirigido e orientado como instrumento de política fiscal, que, se por um lado representa uma perda de receita, por outro compõe, junto com outras políticas de incentivo, uma ferramenta de desenvolvimento da indústria, aumentando a produção, conduzindo a um aumento de empregabilidade, renda per capita, arrecadação de tributos e outras receitas não tributárias (tais como royalties), bem como, com o aumento da renda, o aumento do consumo. Em suma, um benefício sistêmico para toda a economia nacional.
Entretanto, como instrumento de política fiscal que se justifica num propósito bem definido, sua concessão e aplicação são precedidas de regras e exames por parte das autoridades fiscais. Não poderia ser outra a burocracia estatal envolvida, senão uma cuidadosa análise dos pedidos de aplicação do regime, dos bens envolvidos e das atividades para as quais serão tais bens destinados. O que existe é um procedimento administrativo perante a Receita Federal que busca autorizar a inclusão de determinada ou determinadas operações e bens no regime excepcional, envolvendo, além do exame de elementos próprios do postulante, o exame do bem importado e que se pretende esteja ao abrigo do regime especial, tudo nos termos da regulamentação, que hoje, como já dito, consta essencialmente na Instrução Normativa da Receita 844/2008, com as alterações posteriores.
Um dos vários pontos relevantes a ser destacado é que, atualmente, a instrução normativa não traz mais um detalhamento exaustivo de bens e produtos passíveis de enquadramento no regime, senão parâmetros gerais, circunstância que reclama o exame da autoridade administrativa para o devido enquadramento. Essa situação da ausência de enumeração é positiva de um lado, pois permite que o desenvolvimento de novas tecnologias e equipamentos não fique amarrado a uma lista defasada. Por outro lado, há que se considerar que o exame pela autoridade fiscal deve ser essencialmente detalhado e técnico.
Existe, portanto, um procedimento a ser seguido, e não há empresa que queira abolir tal procedimento. Ora, essa análise por parte do fisco não pode ser feita em velocidade incompatível com a complexidade da questão, nem se espera isso dela; não é esse o ponto fundamental. O que não se pode suportar é um retardo desmedido, que acaba por militar contra a própria filosofia do regime. No que tange o quesito tempo de tramitação do procedimento, é essencial que este não seja nem tão irresponsável a ponto de levar a uma análise malfeita, nem irresponsável a ponto de conduzir a uma demora sem fim, prejudicando a exploração e produção onde aquele bem será aplicado.
Outro item de suma importância é a análise da substância econômica das operações individualmente consideradas. Já é chegada a hora de a Receita Federal absorver posturas e conceitos que são comuns na própria jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão do Ministério da Fazenda competente para o julgamento das reclamações e recursos dos contribuintes. Nos primeiros anos da década passada, a jurisprudência administrativa passou a cunhar o conceito de “substância econômica”.
Antes, a análise de qualquer contexto econômico de uma operação passava pela análise do cumprimento estrito da lei; se o contribuinte não praticava nenhum ato vedado expressamente pela lei, seu planejamento era consistente. Depois de 2001, a jurisprudência administrativa sofisticou sua análise e passou, além de investigar o estrito cumprimento da lei, a examinar e refletir sobre se o planejamento desenvolvido tinha uma justificativa econômica que não fosse tão somente uma redução de tributos incidentes. A redução pela redução, para o simples fito de aumento do resultado, mostrava-se passível de reprovação.
A Receita Federal vem analisando contratos, como, por exemplo, os de arrendamento envolvendo empresas estrangeiras e nacionais, e, segundo divulgou para a mídia, vem identificando problemas na alocação de custos e de pagamentos. Aqui jaz um ponto delicado e perigoso: não é porque pagamentos são destinados a pessoa residente no exterior que há algo ilegal, como chegou a sugerir a mídia, classificando essas operações como “manobras”. Não se pode ter como regra pétrea que um maior fluxo de pagamentos para pessoa residente no exterior é sinônimo de evasão de tributos. A operação como um todo tem de ser analisada.
Se um contrato aloca maiores pagamentos ao residente no exterior, há que se identificar a justificativa para tanto, comumente, a maior assunção de riscos e de custos. E mais: se as partes envolvidas forem partes correlatas – empresas de um mesmo grupo econômico, o fisco dispõe do mecanismo de aplicação dos preços de transferência, permitindo que se verifique se a alocação de receitas no exterior se deu em descompasso com a presunção imposta por aquele mecanismo.
Existem, portanto, inúmeros mecanismos e atos administrativos que devem ser empreendidos buscando uma análise em tempo razoável e com técnica responsável, tendo em vista identificar a substância econômica que permeia tais operações.
O planejamento quanto a uma operação econômica, seja ela uma importação, seja um arrendamento, não é uma “manobra”, mas sim uma consequência de características próprias de cada relação econômica. Isso impõe uma análise responsável e despida de qualquer preconcepção de que a redução de tributos configura ato legalmente e moralmente reprovável.
Pelo contrário: a redução de tributos, nos termos da Constituição Federal, das leis e das normas inferiores, é instrumento fundamental de estímulo do crescimento e da solidificação da economia nacional.
Rodrigo Jacobina é mestre em Direito Público, professor de Direito Tributário e sócio de Doria, Jacobina, Rosado e Gondinho Advogados Associados