Opinião

Setor elétrico: necessitamos de um novo modelo normativo?

Por Redação

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Tem sido discutido em alguns fóruns a necessidade premente de se aprimorar a estrutura normativa, “modelo” do setor elétrico brasileiro, visando minimizar a judicialização e as inseguranças que circundam essa indústria e os contratos que regem esse setor. Na minha opinião, não se trataria de “novo modelo”, visto que isso já ocorreu algumas vezes e a cada momento que tal fato é anunciado há apenas o “desmantelamento” de algumas estruturas e a edificação de outras. Frise-se: não pode haver “novo modelo” quando as vigas mestras continuam existindo, entre elas as Leis 8.987/1995, 9.074/1995 e 10.848/2004. Assim, o legislador só poderá ajustar as arestas desse edifício normativo, incluindo atos complementares do CNPE, do MME e da Aneel.

O que torna uma legislação eficaz é a sua legitimidade no processo de elaboração. Nesse caso, vive-se há mais de uma década apenas de atos imperiais: medidas provisórias, decretos, resoluções do CNPE e portarias do MME. Esse rol de atos unilaterais, abusivos e intempestivos transformaram o setor de energia elétrica num ambiente “bomba” e inseguro.

Bomba porque não se imagina o que vai explodir a qualquer momento e inseguro porque o que era direito ontem é desconsiderado hoje, gerando um número insonhável de ações judiciais. Com isso, o Poder Judiciário é atualmente o maior regulador, embora tenha muita dificuldade em depreender a intricada cadeia de responsabilidades e direitos que estão disciplinados. Vive-se a “regulação judicial”. Assim, órgãos de controle, como o TCU e especialmente o Judiciário, têm estabelecido a regulação do setor elétrico (“controlador-regulador”), justamente por terem maior reputação institucional que as autoridades regulatórias do setor. Como podemos ver, os efeitos desse tipo de regulação têm gerado mais resultados negativos que positivos.

Nesse cenário, advoga-se no sentido de que o novo modelo não precisa introduzir mais atos normativos, mas, especialmente, mudar a cultura do arbítrio e da surdez. A boa legislação/regulação se faz com diálogo, audiências públicas, previsibilidade e respeito aos usuários. Essa opinião se fundamenta no fato de que a história tem mostrado que o Poder Executivo publica uma medida provisória num dia, no dia seguinte emite um decreto e, alguns dias depois, a regulação sem considerar o processo legislativo, ou seja, a possibilidade de emendas legislativas e discussões com a sociedade sobre as melhores opções.

Com isso, vemos que: i) a Lei 10.848/2004, originária de medida provisória, já foi modificada por medida provisória 10 vezes; ii) o decreto da comercialização, em 11 anos, já foi modificado 15 vezes;  iii) a Lei 12.783/2013, originária da Medida Provisória 579/2012, em apenas 2 anos, já teve quatro alterações.

Some-se a isso as impermeáveis estruturas do CNPE e do CMSE que atuam como se a sociedade civil não existisse. O CNPE edita ditatorialmente normas por resoluções sem competência para fazê-lo, enquanto o CMSE igualmente não tem representação paritária dos agentes e consumidores do setor e o MME utiliza o mesmo ato que promove e demite funcionários públicos para impor obrigações aos agentes. Devemos considerar ainda o exíguo tempo que é previsto para as audiências e consultas públicas e os incipientes Estudos de Impacto Regulatório para atestar que as propostas do regulador são as que melhor demonstram atender ao interesse público envolvido. A confiança na legislação/regulação decorre da transparência que a sua preparação demandou. Transparência na apresentação: i) dos motivos de fato e de direito que induziram àquela proposta; ii) da mensuração dos efeitos esperados; iii) do impacto que será suportado por outros agentes; iv) dos custos que resultaram em última etapa para os consumidores, sejam cativos ou livres.

O comportamento democrático, transparente e previsível é certamente a melhor proposta para um “novo modelo”, em que os agentes tenham seus contratos respeitados e os usuários, seus direitos preservados. Até porque ter energia elétrica num valor inacessível para o consumidor é violar o direito de acesso à energia como um direito humano. Não estamos precisando de grandes atos, mas de atos lúcidos, com base constitucional e legal, que nos indiquem os reais valores que pagaremos pelo fornecimento da energia. Publicar normas sem saber quem vai arcar com os custos da sua implementação é desrespeitar o regime democrático, o princípio da moralidade, da segurança jurídica e da boa-fé administrativa que deve justificar todos os atos governamentais.

Maria D’Assunção Costa, advogada e doutora em energia pelo IEE/USP. Autora do Dicionário do Direito da Energia, Editora Atlas 

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