Opinião

Sobre gatos e macacos

A coluna bimestral de Jerson Kelman

Por Redação

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As ligações clandestinas nas redes de distribuição de eletricidade e as fraudes nos medidores – conhecidos como “gatos” ou “macacos” – fazem com que significativa parcela da produção de energia elétrica do país – 5%, ou 22 TWh – seja consumida, mas não cobrada. Gatos e macacos são os apelidos carinhosos que tentam passar a impressão de que o furto é uma transgressão menor – do tipo “ilegal, mas e daí?” –, que pode ser tolerada pela sociedade. Todavia, se os consumidores honestos tivessem a compreensão de que são eles que pagam o consumo dos desonestos, provavelmente essa tolerância seria bem menor.

Considerando o atual custo médio de geração, transmissão e distribuição de energia, os gatos e os macacos são responsáveis por uma perda anual de receita superior a R$ 5 bilhões – quase metade do dispêndio anual do Programa Bolsa Família. Grande parte da perda é compensada por meio da majoração das tarifas pagas pelos consumidores honestos, que arcam não apenas com o custo do consumo, mas também com o desperdício dos espertalhões que não se preocupam com a conta de luz. Como “de graça, até injeção na testa”, estima-se que metade da energia furtada não seria consumida se fosse devidamente paga. Ou seja, a eliminação de gatos e macacos é a forma mais eficaz de combater o desperdício de energia elétrica.

A Aneel é a entidade responsável por desenvolver uma estrutura regulatória capaz de induzir à redução do furto de energia. Nessa condição, desenvolveu uma solução coerente com o princípio Price-Cap para repartição do custo entre os consumidores honestos e os acionistas da distribuidora, o que força as empresas à redução gradual do furto de energia sem quebrá-las. Trata-se de um modelo econométrico que permite explicar estatisticamente o furto de energia e comparar os níveis de desempenho das empresas por meio de agrupamentos das áreas de concessão por nível de complexidade social. Dessa maneira, a agência determinou trajetórias descendentes para os níveis regulatórios de furto. O modelo utilizou dados de 2001 a 2006 das 64 distribuidoras.

Após testar uma série de dados econômicos e sociais, a Aneel chegou a quatro variáveis explicativas – duas relacionadas ao nível de anomia da área de concessão: informalidade urbana (percentual da população vivendo em favelas) e violência (taxa de homicídios); e duas relacionadas ao nível de desenvolvimento da área de concessão: infraestrutura (taxa de abastecimento de água) e renda (porcentagem da população considerada extremamente pobre). Os resultados confirmaram as expectativas do senso comum: o furto de energia é maior onde mais pessoas vivem em favelas, as taxas de homicídios são mais elevadas, as taxas de abastecimento de água são menores e mais pessoas vivem em extrema pobreza.

Não obstante todas as variáveis do modelo da Aneel se provarem estatisticamente significativas, a variável mais relevante é a anomia. Portanto, as distribuidoras localizadas em grandes áreas urbanas, como Light (RJ) e Eletropaulo (SP), são consideradas as concessões mais complexas do Brasil, apesar do grande desenvolvimento econômico. A Light, por exemplo, fornece energia a 4 milhões de unidades consumidoras, servindo a 11 milhões de pessoas – 6% da população do país – e precisa lidar com mais de 22% do total de furto de energia no Brasil (cerca de 5 TWh).

Há uma peculiaridade no Rio de Janeiro que dificulta ainda mais o combate ao furto de energia: a altíssima incidência de aparelhos de ar condicionado residenciais, a maior do país. No verão, a temperatura e a umidade atingem níveis intoleráveis, particularmente nas residências pouco ventiladas das comunidades de baixa renda, o que induz ao uso ininterrupto do ar- condicionado, e, consequentemente, à propensão ao furto de energia elétrica. Cenário agravado pelo fato de que nestas residências os equipamentos de ar, em sua maioria, são antigos e energeticamente ineficientes, doados por famílias de classe média e alta. O resultado é que o consumo médio de famílias de baixa renda do Rio é mais elevado do que o das famílias de baixa renda de outros estados brasileiros.

Quando a Aneel desenvolveu o modelo econométrico para explicar o furto de energia por meio da complexidade social, a significância estatística da posse de ar-condicionado também foi averiguada e comprovada. Essa variável, porém, não foi incluída no modelo, na suposição de que as demais variáveis (informalidade urbana, violência, renda e infraestrutura) já seriam suficientes para capturar os efeitos da posse do ar-condicionado no furto de energia elétrica. Agora que estou “do outro lado do balcão”, tenho a clara percepção de que essa não foi a melhor opção metodológica.

Tenho o privilégio de ocupar a direção da Light em um momento de sua longa e rica história em que não há outra opção senão baixar a trajetória real de furto de energia. É sem dúvida um instigante desafio profissional: apesar de a empresa ter desembolsado no combate às perdas cerca de R$ 150 milhões em investimentos e despesas operacionais nos últimos cinco anos, o furto de energia tem crescido 2,3% no mercado de baixa tensão. Até agora, a trajetória real tem sido pior do que a regulatória. Significa que os acionistas arcam com parte do prejuízo.

Para o futuro imediato (até 2013, quando ocorrerá a próxima revisão tarifária da empresa) a perda – medida como percentual da energia furtada em relação à energia faturada – deve descer dos atuais 44% para 32%. Se nesses próximos três anos a Light tiver sucesso a ponto de conseguir que a trajetória real fique melhor do que a regulatória, os acionistas ganharão no curto prazo e os consumidores honestos, no longo prazo (esse ganho será devidamente considerado na ocasião da revisão tarifária). Trata-se de tarefa muito difícil, mas não impossível, tendo em vista o “clima de otimismo” atualmente vivido no Rio de Janeiro, que resulta da conjugação dos esforços dos três níveis governamentais e da sociedade civil no enfrentamento da anomia que por décadas corroeu o Rio.

Atualmente, existem cerca de 1.000 favelas na área de concessão da Light, totalizando aproximadamente 700 mil unidades consumidoras. Nem todas estão fora de controle, mas cerca de 550 mil dessas unidades estão localizadas em áreas de risco, onde o serviço regular é difícil e, em muitos casos, impossível de ser prestado, e onde ocorrem 40% das perdas totais de energia devido ao furto. Por muitos anos, a maioria das ações para reduzir essa prática ilegal foi de difícil execução, devido ao risco de morte dos funcionários da empresa envolvidos nessas operações.

No entanto, a situação vem mudando dramaticamente nas favelas que passaram pelo processo de pacificação, recentemente implementado pelo governo estadual, num esforço sério para “resgatar” as comunidades da violência e integrar seus membros na sociedade formal. O objetivo é transformar as pessoas que antes viviam sob o terror imposto por traficantes de drogas em cidadãos com plenos direitos. O programa tem proporcionado as condições necessárias para que a concessionária desenvolva suas ações e preste serviços em condições similares às de outras áreas da cidade.

Em um trabalho conjunto com as autoridades, a Light atua para renovar a rede de distribuição e melhorar a qualidade do serviço. Além disso, a empresa desenvolve nessas áreas o Comunidade Eficiente – concebido dentro do Programa de Eficiência Energética da Aneel –, que não visa apenas reduzir o consumo de energia e fazer com que a conta de energia “caiba no bolso do consumidor”, mas também estreitar o relacionamento entre a concessionária e os consumidores dessas comunidades, melhorando a qualidade de serviço e cidadania de seus clientes.

O Programa de Pacificação teve início na comunidade Santa Marta, uma favela incrustada em Botafogo, um bairro de classe média, onde existem cerca de 1.500 famílias. Lá, os investimentos em melhorias na rede elétrica e programas de eficiência energética totalizaram cerca de R$ 4 milhões. Além do lançamento de uma rede nova de alto custo por conexão (alguns postes foram transportados desmontados nos ombros dos trabalhadores), foram substituídas cerca de 600 geladeiras, 7 mil lâmpadas e 500 instalações elétricas domiciliares.

Antes da pacificação, o consumo médio mensal era de 290 kWh por unidade consumidora. Atualmente atinge 160 kWh – uma redução de 45%. E a média de consumo ainda está diminuindo! Além disso, o percentual de unidades consumidoras com ligações irregulares na rede caiu de 93% para zero em poucos meses.

Antes da pacificação, a soma dos interesses individuais, na ausência absoluta de regras, resultava numa tragédia coletiva. O serviço era de péssima qualidade (DEC e FEC elevados), embora gratuito. Agora prevalece o pacto do respeito mútuo: a energia é paga, mas a concessionária presta serviço tão bom quanto nas áreas nobres da área de concessão.

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