Opinião

A xícara de açúcar e o ICMS amargo

A coluna bimestral de Jerson Kelman

Por Redação

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Ana e Lucia são vizinhas. Às vezes uma socorre a outra, por exemplo, emprestando uma xícara de açúcar. Quando isso acontece, não passa uma semana para que ocorra a devolução. Será que essa inocente cooperação entre as duas amigas encobre uma sonegação de ICMS? Afinal, o açúcar circula e ICMS significa “imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços”.

Acredito que a resposta seja “não”, porque, no exemplo, o açúcar não é uma mercadoria adquirida para posterior revenda ou insumo para confecção de outro bem, que será vendido. No caso, o açúcar não é comprado nem vendido. É apenas emprestado e devolvido, sem que haja nenhuma transação financeira. 

Há uma situação semelhante entre a distribuidora de energia elétrica e uma unidade consumidora dotada de microgeração, por exemplo, uma casa com painel fotovoltaico instalado no telhado. Às vezes o fluxo de energia é da rede para a casa, e outras vezes em sentido oposto. A Resolução Aneel 482/2012 define que o consumo de energia a ser faturado é a diferença entre a energia que entra e a que sai da unidade consumidora (net metering), devendo a distribuidora utilizar o excedente que não tenha sido compensado no ciclo de faturamento corrente para abater o consumo medido em meses subsequentes. Se as quantidades de energia nos dois sentidos são iguais (entrada e saída), como no caso da xícara de açúcar, em princípio não haveria consumo a ser faturado. Como, porém, a rede esteve à disposição do consumidor, é razoável que ele pague à distribuidora por esse benefício. A regra atual determina que, se a instalação for trifásica, o consumidor deve pagar o equivalente ao consumo mínimo de 100 kWh, a título de conexão. Nesse caso, qual seria o valor do ICMS? Proporcional a 100 kWh?

Os secretários estaduais de Fazenda reunidos no Confaz entenderam que não. Para eles a distribuidora deverá emitir a conta com “o valor integral da operação, antes de qualquer compensação, correspondente à quantidade total de energia elétrica entregue ao destinatário” (Convênio ICMS 6, 5/4/2013). Ou seja, o fisco estadual usa a entrada de energia na unidade consumidora para calcular o imposto e não o valor líquido da diferença entre entrada e saída. Por exemplo, se a entrada e saída de energia ao longo de um mês forem respectivamente de 800 kWh e 600 kWh, o ICMS será calculado como se o consumidor tivesse consumido 800 kWh, e não 200 kWh. Dependendo da alíquota, o pagamento de ICMS ultrapassará o custo da energia fornecida pela distribuidora!

Aprendi com Vilson Christofari que essa recente posição do Confaz – taxar pelo valor total da entrada e não pelo líquido – diverge de decisão anterior do próprio Confaz para o caso de autoprodutor que realize operações de compra e venda na CCEE, quando a base de cálculo é o valor da liquidação financeira contabilizada pela câmara. Ou seja, o valor líquido das transações. 

Na contramão dos incentivos fiscais dados por outros países a fontes alternativas, a decisão do Confaz dificulta a modernização do sistema elétrico. Não se trata de maldade ou incompreensão, e sim do empenho dos secretários de Fazenda em maximizar a arrecadação, mesmo que para isso tenham de criar mais uma excentricidade na tributação de energia elétrica. Há precedentes: a incidência de ICMS sobre o próprio ICMS e demais tributos e encargos; o recolhimento do ICMS por ocasião do faturamento e não do recebimento; a cobrança de ICMS sobre os subsídios direcionados aos consumidores de baixa renda extraídos de um fundo, que por sua vez é alimentado pelo pagamento de contas de energia que já embutem o ICMS; e até mesmo a tentativa de cobrar ICMS da energia furtada, mesmo inexistindo o contribuinte de fato (o consumidor final).  

O Confaz não deveria condenar o setor elétrico à ineficiência em troca de “um prato de lentilhas”. Ao contrário, deveria induzir os consumidores a contribuir para o atendimento do interesse coletivo por meio da maximização de seus ganhos individuais. Dito de maneira mais simples: é preciso dar sinais econômicos enxergando mais longe do que a arrecadação do dia seguinte.

1 Convênio ICMS 15, cláusula terceira, inciso I, letra “a”, 30/3/2007.

A coluna de Jerson Kelman é publicada a cada dois meses
E-mail: jerson@kelman.com.br

 

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