Opinião

Conteúdo local - Mitos e verdades

O que se constata atualmente é uma tentativa de criação de mecanismos complexos e pouco práticos para a avaliação da contribuição do conteúdo local à indústria do petróleo

Por Redação

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A ideia de utilizar o mercado interno de um país para desenvolver sua indústria é antiga e já foi proposta e empregada de diferentes formas. Os choques de preço do petróleo na década de 70 levaram a Europa a buscar novas áreas de fornecimento. As descobertas no Mar do Norte foram, para o Reino Unido e a Noruega, incentivos para desenvolver uma indústria local.

O Reino Unido dispunha de uma indústria forte, não petroleira. Com o desenvolvimento dos campos de gás na Bacia Sul, ficou evidente que as empresas britânicas não dispunham de conhecimento para a produção de um grande número de produtos especializados, necessários ao desenvolvimento de um campo de hidrocarbonetos, da descoberta à produção. No início da década de 70 parecia que a indústria britânica não seria capaz de suprir a maior parte dos produtos e serviços necessários à rápida expansão da produção de óleo e gás local.

Em 1972 foi realizado um estudo, pelo governo, para examinar os benefícios que o petróleo do Mar do Norte poderia trazer à economia. O estudo confirmou que somente 25% a 30% da demanda poderia ser atendida localmente e sugeriu que iniciativas governamentais poderiam levar a um significativo aumento da participação das indústrias locais no suprimento.

Das recomendações do estudo, a de maior importância foi a que propôs a criação do Escritório de Suprimentos para o Offshore, OSO em inglês (Offshore Supplies Office), cuja missão seria incentivar e coordenar todas as ações necessárias para maximizar a participação da indústria local no mercado que se desenvolvia.
Em 1974 foi assinado um memorando de entendimentos (MOU) entre a Secretaria de Estado para Energia e a UKOOA (organização que representava as empresas petroleiras), estabelecendo o FFO, com o objetivo de assegurar que fosse dada às indústrias locais a total possibilidade de competir de forma justa e ganhar encomendas em bases competitivas. É importante ressaltar que o FFO (Full and Fair Opportunity), como ficou conhecido, não representava uma política protecionista, por se entender que uma atitude protecionista não levaria a uma indústria saudável e competitiva.

Com base no conhecimento existente, foi possível avaliar os pontos fortes e fracos da indústria e assim sugerir estratégias para aumentar a capacidade de atendimento, tais como joint ventures, investimentos internos nas empresas, fundos para P&D, como forma de criar ou encorajar a fixação da tecnologia no Reino Unido.
Já ao final da década de 80, a participação britânica nos fornecimentos atingiu, de forma consistente, níveis entre 75% e 80%. Nunca foi o objetivo atingir 100% de capacidade nos suprimentos, por se levar em conta as especificidades dos mercados.

No período entre 1992-1994 mudanças fundamentais ocorreram quanto ao papel desempenhado pelo OSO, ao se reconhecer que a indústria estava suficientemente madura de forma a não justificar o monitoramento individual de contratos. Era mais importante dar suporte às empresas britânicas para que se envolvessem no mercado de exportação. O OSO passou então a operar no downstream.

Um ponto importante a salientar é que a legislação europeia sobre fornecimentos (The Procurement Directive) tornou ilegal a discriminação entre os países-membros, obrigando à revogação do MOU sobre o FFO.
Em um período inferior a 20 anos, foi criado um projeto, implementado e bons resultados foram atingidos e permanecem, com empresas competitivas e com atuação no mercado mundial.

Na Noruega ocorreu a utilização de um mecanismo pelo qual a utilização dos produtos locais foi um dos critérios para a avaliação das propostas para as concessões de E&P. O sistema foi também exitoso, e é semelhante ao que se praticou no Brasil.

No Brasil, o papel que se poderia comparar ao do OSO cabe à Onip, a qual teve a preocupação, desde a primeira rodada de licitação de blocos, de incentivar a participação da indústria local no mercado que surgia. Na primeira rodada, as empresas petroleiras tinham a possibilidade de propor o uso de produtos e serviços locais, de acordo com sua avaliação da capacidade existente. Entenderam que a participação local se caracterizaria pela compra de bens e equipamentos a empresas aqui instaladas, independente da origem dos equipamentos e serviços.

Buscando aumentar o interesse das empresas petroleiras na produção local, a ANP passou a levar em consideração a oferta de conteúdo local, na avaliação das propostas para obtenção de concessões de E&P. Assim foi até a mudança de governo em 2003. É necessário chamar a atenção para a atuação de algumas petroleiras que, neste período em que a oferta de conteúdo local começou a ser considerada na escolha da proposta vencedora, chegaram a oferecer 100% de conteúdo local em todas as fases de um contrato de concessão, algo inatingível.

A partir de 2003, o novo governo optou por tornar obrigatório um valor mínimo para o conteúdo local, prática que prevalece até hoje e em valores bastante elevados. Os valores mínimos variam para blocos em terra, águas rasas e águas profundas, bem como de acordo com a fase do Contrato de Concessão. O governo desenvolveu um amplo programa, para determinar a capacidade real existente e as demandas previstas pelo rápido crescimento das descobertas no offshore do Brasil, buscando compatibilizá-las o mais possível. E isto antes das descobertas do pré-sal.

Entre a assinatura de um Contrato de Concessão e uma primeira descoberta a ser avaliada, há um intervalo de cinco a dez anos. A ANP, ao constatar o não cumprimento das cláusulas de conteúdo local, começou a aplicar as multas previstas nos contratos, que são pesadas. As operadoras e em especial a Petrobras sentiram o efeito do descumprimento da cláusula. Com isto, reclamações e pleitos referentes a mudança das regras surgiram e ganharam força.

A ANP estabeleceu que um concessionário, ao buscar um fornecimento local, se encontrar preços ou prazos superiores aos que prevalecem no mercado internacional, pode solicitar à ANP a dispensa do cumprimento dessas obrigações, mas, para tanto, terá que fazer prova do que alega. A ANP poderia, então, sem maiores problemas ou dificuldades, decidir pela dispensa da obrigação, no caso especifico.

O que parece simples, no entanto, se complica por diretrizes governamentais, neste caso dadas diretamente à Petrobras, para que, como a maior operadora e consequentemente a maior consumidora de bens e serviços do país, assumisse um papel de agente de desenvolvimento industrial, dando preferência às empresas locais, sem a preocupação de prazos e preços competitivos. Aos parceiros da Petrobras coube aceitar tais condições, criando-se para as demais operadoras o fato consumado de um fornecimento caro e com prazos mais longos. Por essa razão, a solicitação à ANP de uma dispensa se tornou problemática.

Os preços e prazos praticados pela indústria local se tornaram não competitivos e, de um modelo que visava incentivar um desenvolvimento industrial, recaímos no modelo de reserva de mercado que já se tinha revelado prejudicial, no passado. A experiência vivida não foi levada em conta e o que temos hoje, com algumas exceções, são empresas pouco competitivas em preços e em prazo, com a agravante da falta de um sistema de conformidade, para assegurar a qualidade.

Com a queda dos preços do petróleo, a situação se agravou, já que os preços dos insumos são essenciais para uma produção competitiva. Em todo o mundo se busca, no momento, a redução de custos de produção para fazer face aos baixos preços do petróleo. No Brasil, opções como subsidiar empresas pouco competitivas ou deixar que elas fechem, como aconteceu no passado, com o final do ciclo de mercado protegido, não são boa solução.

A solução deverá ser buscar, de forma ativa e objetiva, a exportação como forma de ampliar o mercado, mas praticando preços e prazos competitivos e com qualidade. Temos vantagens geográficas para fornecimento, por exemplo, aos países africanos, especialmente os da costa oeste daquele continente.  No entanto, a atividade de empresas brasileiras no continente africano é muito limitada, sendo representada por poucas empresas vendedoras de serviços e pouco fornecimento de equipamentos.

O mercado latino-americano também oferece oportunidades. A criação de blocos de comércio envolvendo países desenvolvidos e um grande número dos em desenvolvimento, quer na área do Pacífico, quer na área do Atlântico, blocos dos quais o Brasil não participa, vai tornar cada vez mais difícil, para o Brasil, a competição no fornecimento de bens e serviços.

O que se constata atualmente é uma tentativa de criação de mecanismos complexos e pouco práticos para a avaliação da contribuição do conteúdo local à indústria do petróleo. O que os exemplos citados nos mostram é que basta dar oportunidades justas às empresas locais, sem obrigar ao uso de bens e serviços não competitivos, sem criar condições de proteção artificiais, para que em um prazo de uma década se atinja uma participação significativa da indústria local, com capacidade de competir mundialmente.

John M Albuquerque Forman
é ex-Diretor da ANP

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