Opinião
Recuperação da energia contida no lixo
A coluna bimestral de Jerson Kelman
Em meu discurso de despedida da presidência da Light, dirigido aos líderes da companhia, registrei uma única frustração: “lamentavelmente não consegui realizar a ambição de viabilizar econômica e tecnicamente a produção de energia elétrica a partir do lixo, mas certamente isso ocorrerá nos próximos anos”. Meu interesse pelo assunto é antigo. Em 2007, quando era diretor-geral da Aneel, defendi uma resolução que isenta produtores e consumidores de energia elétrica do pagamento das tarifas de transporte de energia (Tust e Tusd) nos casos em que o lixo seja a fonte primária de energia.
Embora essa resolução tenha sido aprovada, há pouco aproveitamento energético do metano produzido em aterros sanitários, e não existe termelétrica que queime de maneira direta o lixo para produção de eletricidade. Falta algo para deslanchar o processo. Possivelmente, leilões específicos para essa fonte.
Entretanto, essa tese – leilão específico para energia produzida pelo lixo – sem dúvida enfrentará a objeção daqueles que se opõem a bondades dirigidas a um tipo de fonte de energia ou a um particular tipo de consumidor. Na Aneel, sempre foi essa a minha posição, porque tinha a convicção que a maioria dos consumidores acaba arcando com o correspondente custo. Literalmente, são eles que acabam pagando a conta. Admitia, porém, a única exceção no caso específico do lixo, mais pelos aspectos ambientais e sociais do que pelo energético. De fato, é repugnante a poluição que se observa em milhares de lixões que se espalham pelo país. E não existe condição social mais degradante do que a vivida pelos que tiram o sustento desses lixões.
A Lei 12.305/2010 determina que, na gestão e no gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos (Art. 9o). A lei também estabelece que a recuperação energética é uma forma de reaproveitar os resíduos sólidos (Art. 7o, XIV). São os mesmos princípios adotados na maioria dos países desenvolvidos. Para colocá-los em prática, esses países seguem diferentes rotas tecnológicas e comportamentais, inclusive a recuperação da energia contida no lixo por meio de incineração. Trata-se de uma alternativa que no passado era poluidora, mas que hoje, graças ao avanço tecnológico, é ambientalmente segura.
Do lado econômico, também há argumentos favoráveis à recuperação da energia contida no lixo. Primeiro, porque se trata de uma produção “firme”, que pode ser alocada na base, ao contrário das demais fontes alternativas, que são intermitentes ou dependem das condições climáticas. Segundo, porque a produção de energia a partir do lixo é feita a poucos quilômetros de onde as pessoas moram e consomem eletricidade. Ou seja, trata-se de uma fonte que minimiza o gasto com o transporte da energia elétrica. Terceiro, porque minimiza o gasto com o transporte do próprio lixo para aterros sanitários cada vez mais longínquos.
Apesar desses aspectos positivos, é compreensível que as autoridades do setor elétrico hesitem em organizar um leilão específico para alguma fonte, não importa qual. Se o fizessem, agradariam os empresários do ramo escolhido e desagradariam todos os demais. O mais simples, e aparentemente o mais justo, é deixar que as diferentes fontes concorram na arena econômica. Em princípio, isso beneficia o consumidor, que paga o menor preço pelo megawatt-hora firme de energia elétrica.
Nessa competição, o lixo perde, porque o custo do megawatt-hora é quase o dobro da fonte mais competitiva. Por outro lado, mesmo que se fizesse um programa de intensa utilização energética do lixo, o impacto tarifário seria muito pequeno. Por exemplo, se 80% do lixo da região metropolitana do Rio de Janeiro fosse incinerado para produzir eletricidade (supondo reciclagem para os outros 20%), o aumento da capacidade de geração, exatamente num importante centro de carga, seria da ordem de 150 MW (0,15% da capacidade do sistema interligado). O suficiente para ser interessante sob o ponto de vista elétrico, mas sem causar impacto significativo no bolso do consumidor.
Conclusão: a realização de leilões específicos para a compra de energia elétrica produzida a partir do lixo melhoraria a confiabilidade do sistema elétrico e resolveria um problema de grande relevância ambiental e social.
A coluna de Jerson Kelman é publicada a cada dois meses
E-mail: jerson@kelman.com.br