Opinião
Reflexões do regulador
O diretor-geral da Aneel, Jerson Kelman, faz, em artigo, um balanço dos seus quatro anos à frente da agência
Em meu depoimento no relatório comemorativo sobre os dez anos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), afirmei: “(...) hoje tenho convicção ainda maior que se o regulador souber formular adequadamente as questões a serem respondidas, já tem meio caminho andado. O restante depende de equilíbrio, conhecimento, objetividade e bom humor. Nesses quase oito anos atuando como regulador, gostaria de ter tido uma dose maior de bom humor”.
Se tivesse conseguido essa dose maior de humor, teria me aborrecido menos com as imperfeições de nossa jovem democracia, que me forçaram tratar de falsas questões propostas, tanto por eletrodemagogos quanto por fundamentalistas socioambientais.
Mas, a despeito do déficit de humor, tenho a pretensão de ter conseguido canalizar os esforços da Aneel para resolver questões efetivamente relevantes para a estabilização do marco regulatório do setor elétrico. O que significa menor risco para os investimentos, maior competição entre os agentes onde possível, menor remuneração do capital e, na outra ponta, menor tarifa para os consumidores.
Ao chegar à Aneel, vi com desconfiança o fato de que as reuniões da Diretoria Colegiada eram públicas e transmitidas ao vivo pela internet. Por mais que sempre tenha zelado pela transparência e objetividade, achava difícil debater temas complexos em público. Temia que em alguns casos ficasse evidente que o meu preparo seria insuficiente. Sentia-me incomodado com a perspectiva de realizar um contínuo “strip tease” intelectual.
O meu temor era infundado, e o incômodo dissipou-se logo na primeira reunião, ao perceber que não seria razoável esperar que um diretor pudesse ter conhecimento profundo sobre todos os temas. Ao contrário: o que se esperava é que ele ouvisse atentamente todas as ponderações, refletisse e, se não tivesse compreendido, tivesse a humildade de dizer e pedir novas explicações. E somente quando seguro, tomasse a sua própria decisão. Sem recear contradizer o pensamento dos demais diretores, dos técnicos da Aneel, dos agentes, dos consumidores ou do governo.
O principal mérito da reunião pública é deixar absolutamente claro porque se toma a decisão “A”, e não a “B”. Sem essa transparência, certamente estariam a circular pelo setor elétrico, como ocorre em outros setores da economia, variadas “explicações” sobre as motivações da Aneel em cada caso específico. Com essa publicidade, as explicações tornam-se menos necessárias, e não há espaço para decisões imotivadas. Melhor ainda: não há espaço para decisões motivadas por interesses não-coincidentes com o interesse público.
As audiências públicas são organizadas na mesma linha de transparência. Hoje a sociedade acredita que as reuniões ou audiências públicas da Aneel não são “para inglês ver”. Em numerosos casos, a versão final de uma resolução é significativamente melhor do que a minuta devido à interação com os interessados, sejam eles agentes ou consumidores.
Um bom exemplo é o processo de aprovação da metodologia para o segundo ciclo de Revisão Tarifária Periódica. Em 2005, ao final do primeiro ciclo, a Aneel iniciou o processo de aperfeiçoamento da metodologia a ser implantada a partir de 2007. No meio do caminho, praticamente toda a experiente equipe da Superintendência de Regulação Econômica foi trocada, quando se exauriu o prazo legal para a manutenção dos servidores temporários, base de sustentação do quadro de funcionários da agência naquele momento.
A nova e competente equipe técnica dedicou milhares de horas à discussão das alternativas, muitas delas sugeridas nas centenas de contribuições à audiência pública. Orientei pessoalmente essa mudança metodológica, ancorando-a em dois conceitos: não se deveria “dar um cavalo de pau” em relação à primeira metodologia (o regulador deve evitar a mudança radical de abordagem a cada revisão) e os resultados deveriam ser reproduzíveis. Devido à complexidade da matéria, somente em novembro de 2008 foi aprovada a versão final. Não conseguimos seguir o cronograma originalmente traçado, mas o resultado final ficou bem melhor do que poderíamos ter pretendido.
Cito três casos de revisão tarifária que tiveram alguma repercussão. O primeiro ocorreu logo no início de meu mandato, quando a Aneel concluiu o processo de revisão da Light e substituiu a estimativa inicial da base de remuneração. A diferença entre o valor definitivo e o anteriormente estimado resultou numa “dívida dos consumidores” em favor da Light. Naturalmente, a concessionária pretendia receber imediatamente, o que implicaria aumento tarifário em data não-coincidente com o “aniversário” do contrato de concessão. A legislação permite a mudança tarifária a qualquer tempo, desde que a concessão esteja em desequilíbrio econômico-financeiro. E se esse for o caso, é preciso revisar todos os aspectos, e não apenas algum pleito específico.
Todavia, não se tratava de revisão extraordinária, mas tão somente do pagamento de um ativo regulatório cuja postergação renderia a aplicação da taxa Selic, com impacto tarifário meses à frente. Mas, tal mudança, fora do abrigo da revisão extraordinária, necessita de autorização do Ministério da Fazenda, por imposição da Lei do Real. E quando fizemos a consulta, alguns entenderam que a Aneel estava abdicando de suas responsabilidades. Não era o caso.
Dois meses depois, ocorreu a revisão tarifária da Celpe, quando a agência enfrentou os mais diversos questionamentos por cumprir a lei e respeitar os contratos. No cálculo da parcela A foi considerado um valor contratual de R$ 137,85/MWh para a venda de energia da Termopernambuco – empresa do mesmo grupo – para a Celpe. Em 2005, esse preço parecia abusivo. Alguns leilões de energia depois, verificou-se que não era. Todavia, não faltaram “engenheiros de obra feita” a condenar o contrato entre partes relacionadas, permitido pela legislação vigente na época (hoje é proibido). Contudo, na época do racionamento, o governo tentava atrair novos geradores térmicos interessados em lucrar com o resgate do país da grave dificuldade em que se encontrava.
Os adivinhadores do passado argumentavam que, com o fim do racionamento, o contrato da Termopernambuco com a Celpe deveria ser cancelado pela Aneel, em defesa do interesse público. Não mensuravam que o passado de um país no qual não se respeita contratos é imprevisível – e, conseqüentemente, esse país não é um bom lugar para se investir. O que significa maior remuneração do capital, para compensar o alto risco, e maiores tarifas para os consumidores.
Ao longo dos anos, enfrentamos uma CPI estadual, protestos da imprensa local, ações na Justiça e audiências públicas na Câmara dos Deputados (um deputado protocolou um pedido de instauração de CPI, desta feita federal). Fui até intimado a comparecer na Polícia Federal para prestar depoimento sobre os critérios da definição de tarifas a um delegado que se encontrava visivelmente constrangido pelo fato de que o tema “metodologia tarifária” tivesse se transformado em assunto policial.
Somente em dezembro de 2008 a Justiça de Pernambuco arquivou o processo. Na decisão, registrou a necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da concessionária, destacando a sua previsão constitucional e legal, bem como a competência da Aneel, e não do Judiciário, para a fixação de tarifas.
O terceiro caso – e de maior repercussão – foi a revisão da tarifa da Enersul: quase 51%, aprovada em abril de 2003, quando eu ainda não estava na agência. Por ser muito difícil o consumidor arcar com incremento tarifário tão elevado, a Aneel diferiu parte do pagamento em quatro parcelas aplicadas nos anos subseqüentes. Assim, ao longo de minha gestão, observou-se ano após ano a escalada de tarifas da concessionária, resultando em compreensível inquietude social.
O valor elevado da “conta de luz” gerou mobilização de setores organizados, ação de Ministério Público, críticas ofensivas à agência pela imprensa local e instalação de uma CPI estadual. De nosso lado, procurávamos entender o alto percentual de 2003. Pedi que fosse feita uma cartilha para que consumidores pudessem entender a composição da conta de luz e tivessem condições de pressionar a classe política para diminuir a incidência de encargos e tributos. Mas, ao ler a minuta, as dúvidas persistiram.
Em particular, custava-me entender a diferença tarifária entre Cemat e Enersul, as áreas de concessão similares. A dúvida levou a uma eficiente ação de fiscalização, por determinação da Diretoria da Aneel, que, compilando as notas técnicas elaboradas durante o processo de revisão tarifária da Enersul, detectou um erro material.
A correção desse erro material resultou num rebaixamento tarifário e em duas interpretações equivocadas. A primeira, de alguns agentes do setor elétrico, que enxergaram nessa atitude uma negativa ao princípio tão enunciado por mim de que “na Aneel, o passado é previsível”. Desdobrei-me em explicações. Se alguém no passado, equivocadamente, entendeu que dois mais dois é igual a cinco, cabe correção a qualquer tempo. Trata-se de retificação de um erro. O que é muito diferente do cancelamento de um contrato legal, como se pretendia no caso Celpe.
A segunda interpretação equivocada – nesse caso, intencional – partiu de alguns (felizmente poucos) políticos locais que reivindicaram a paternidade da redução tarifária. No sentido de diminuir o papel da agência, enxergaram um fantasma: a inexistente intencionalidade do erro. Assim agindo, não avançaram um milímetro na consecução da Justiça e no aprimoramento da eficácia administrativa. Mas provavelmente ampliaram a base eleitoral. O que é lamentável.
No esforço para diminuir as tarifas, a Aneel focou atenção no combate às perdas não-técnicas e autorizou, em caráter experimental, a adoção de medição eletrônica para combater o furto de energia e a fraude. Por ser uma experiência recente, cabem aperfeiçoamentos. Um deles é explicar a diferença de valores após a troca do medidor. Alguns consumidores honestos se irritaram ao receber contas altas, mas que na realidade resultavam de fraudes perpetradas por antigos moradores.
Até agora, infelizmente, a sociedade não está convencida que a moralização imposta pela adoção da medição eletrônica resultará em diminuição de tarifa para os consumidores honestos. A falta de entendimento gerou um clima de insatisfação no Rio de Janeiro e criou o caldo de cultura para a atuação de alguns eletrodemagogos que lograram criar toda a sorte de obstáculos para o combate ao crime.
No meu discurso de posse na Aneel destaquei ter “a convicção que cabe à agência reguladora colaborar intensamente com o governo, fornecendo subsídios para a formulação da política do setor (....) é certo que a agência deve detectar os efeitos das decisões governamentais e, quando for o caso, fornecer, com absoluta lealdade e espírito público, sugestões quanto à política setorial...”. Foi o que fiz.
Alguns episódios tiveram maior destaque e ocuparam as manchetes dos jornais. Em 2006, enviei ofício ao MME alertando sobre a necessidade de não contabilizar as térmicas movidas à base de gás natural que estavam sem combustível. O crescimento da demanda por gás natural nas indústrias e para uso veicular limitou a disponibilidade desse combustível para a as usinas. Entretanto, a Programação Mensal da Operação (PMO) realizada pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) incluía essas térmicas no parque gerador. Um teste simultâneo de verificação da disponibilidade de gás mostrou a real situação e contribuiu para que a confiabilidade do sistema e o custo marginal de operação pudessem ser mais bem-avaliados.
Na minha posse, na presença das ministras Dilma Rousseff (Minas e Energia) e Marina Silva (Meio Ambiente), coloquei-me à disposição para colaborar no processo de licenciamento ambiental de novas usinas. Promessa cumprida em variadas circunstâncias, como em 2007, quando, na Comissão de Minas e Energia da Câmara, fui perguntado sobre a solução para aumentar a oferta de energia hidrelétrica. Defendi a necessidade de alteração da legislação, principalmente para atribuir ao Ibama a responsabilidade de elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental (hoje o Ibama aprova estudos feitos pelos interessados).
Essa sugestão deflagrou uma reação por parte de Procuradores da República no Pará que, numa atitude intimidatória, ameaçou-me com a absurda acusação de apologia ao crime ambiental.
Recentemente fui novamente acusado de adotar “atitude de integral desrespeito à lei – capaz de causar prejuízo irreparável à ordem ambiental, econômica e social”, por enviar um ofício ao presidente do Ibama. Isso mesmo: sou acusado não por ter tomado alguma decisão que tenha prejudicado o Erário e atentado contra o meio ambiente ou a moralidade da administração.
E sim porque apresentei uma sugestão referente à usina de Jirau. O meu ofício diz: “ao apreciar a emissão de licença de instalação para a implantação das estruturas não permanentes, com vistas ao eventual aproveitamento da janela hidrológica de 2008, considere não apenas os efeitos sociais e ambientais segundo a ótica local, mas também segundo as óticas nacional e global”.
E quais seriam os efeitos sociais e ambientais segundo as óticas nacional e global? A energia não gerada em Jirau em 2012 deveria ser “encomendada” em 2009, no chamado leilão A-3, por meio de novas usinas térmicas. Essa energia, oriunda da queima de óleo combustível, encarece a tarifa e contribui para o efeito estufa. Apenas em 2012 teríamos à emissão de cerca de 600 mil toneladas de CO2 e um ônus para o consumidor de energia elétrica estimado em mais de R$ 400 milhões.
Não posso negar que foram quase 1.500 dias bem emocionantes, sem rotina, em que a complexidade das decisões por vezes azedou o meu humor. Eu costumava dizer que “na Aneel se mata um leão por dia”. Parei de usar a expressão com receio de ser novamente acusado de crime ambiental.
Jerson Kelman é professor da Coppe/UFRJ, curador da Fundação Brasileira de Desenvolvimento Sustentável, foi diretor-presidente da ANA e deixa a Diretoria-Geral da Aneel este mês