Opinião

Um Belo Monte de surpresas e incompreensões

Por Edvaldo Santana, diretor da Aneel

Por Redação

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Nas últimas semanas ganhou a atenção da mídia nacional e internacional um evento importante realizado pela Aneel, o leilão da UHE Belo Monte, que, depois de construída, vai agregar um montante de energia correspondente a cerca de 4,5 mil MW médios, bem mais do que a necessidade anual de acréscimo de energia. É como se um só empreendimento incorporasse à oferta toda a necessidade adicional de energia para todo o sistema interligado. Por isso tudo, essa é uma grande e, sobretudo, importante obra.

Mas a grande repercussão do leilão de Belo Monte não decorreu do tamanho ou da importância da usina. São surpreendentes as justificativas para os também grandes e importantes questionamentos sobre a usina. As justificativas estariam associadas à relevância dos “impactos ambientais da obra”. Mas isso parece não ser verdade, de onde vem a primeira surpresa. Estudo recente do Banco Mundial mostra que no máximo – repito, no máximo – 2,1% dos custos de uma hidrelétrica estariam vinculados aos aspectos ambientais, isso depois das exigências que passaram a ser impostas a partir de meados do início da década passada, com a participação de ONGs, do Ministério Público e da Justiça. 

Na verdade, o que se convencionou chamar no Brasil de impactos ambientais, no fundo são impactos socioambientais, que participariam com até 19,4% do custo total da obra – aqui incluindo riscos de atraso nas obras e também regulatórios –, dos quais 10,4% são custos diretos que dizem respeito apenas aos aspectos sociais.

Entretanto, o mesmo estudo do Banco Mundial mostra que podem chegar a 7,6% do valor de uma hidrelétrica os custos associados às incertezas regulatórias que norteiam a variável meio ambiente e ao que a sociedade perde (ou deixa de ganhar) com os atrasos no cronograma de implantação da usina. Esta constatação é outra grande surpresa, uma vez que esses custos não alcançariam 1% do valor total do investimento. Para se ter uma ideia do significado desse número, em um aproveitamento como Belo Monte, que custará cerca de R$ 20 bilhões, mais de R$ 1,5 bilhão corresponderiam às incertezas regulatórias ambientais e ao custo oportunidade de não se ter a energia em um prazo adequado. Este valor equivale ao que se empreenderia em uma usina de 500 MW de capacidade instalada, suficiente para atender à metade da demanda do estado de Sergipe.

O surpreendente é que em usinas como Machadinho e outras planejadas no decorrer dos anos 1980, e que entraram em operação antes de 2002, os custos associados aos impactos socioambientais participavam com percentuais da mesma ordem ou até maiores do que os 14,7% encontrados atualmente pelo Banco Mundial. Ou seja, antes mesmo das frequentes interferências atuais, que param obras já começadas ou não deixam que as iniciem, o setor elétrico já se preocupava, e muito, com os aspectos socioambientais. As discussões de então, que envolviam o Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), a Igreja e outras autoridades locais, mitigavam os efeitos socioambientais. E observe-se que, em termos absolutos, dado que as obras (estatais) eram mais caras, o valor investido na variável socioambiental era bem maior.

Então, quais os custos que cresceram? Foram os custos indiretos, isto é, o risco regulatório ambiental e os riscos de atrasos das obras. Mas por que cresceram? Aqui a explicação não é imediata, mas existem explicações e também constam do relatório do Banco Mundial. Trato aqui de duas delas, as mais fáceis de explicar.

A primeira diz respeito a um complexo e, ao mesmo tempo, clássico problema de especialização versus coordenação. O processo de licenciamento de uma hidrelétrica, em geral, é conduzido por um especialista, quase sempre uma pessoa muito bem preparada; só que bem preparada em uma determinada área, como, por exemplo, ornitologia (estudo das aves). Nesse caso, esse especialista daria mais atenção aos pássaros eventualmente atingidos, sendo muito mais exigente quanto a esse aspecto. Se, por exemplo, entre a licença prévia (LP) e a licença de instalação (LI), esse técnico vier a ser substituído por outro especializado em primatas ou répteis, sem dúvida as áreas de terra necessárias à realocação dos animais teriam características diferentes e constariam como novas exigências, quando a área anterior até já poderia ter sido adquirida pelo empreendedor. O que é mais grave: diante da nova exigência, logo haveria uma ação na justiça, alegando que a LP fora indevida, conseguida via corrupção, etc. O problema seria resolvido sem dificuldade com a simples execução do processo de licenciamento em um arranjo que os administradores chamam de matricial, dada a facilidade para reunir especialistas de diversas naturezas.

A segunda explicação está vinculada à primeira. Há uma instrução normativa do Ibama, a IN 65/2005, pela qual tal entidade teria até 30 dias para emitir o Termo de Referência (TdR), documento importantíssimo do processo de licenciamento, já que é nele que constam como deve ser feito o EIA/Rima e o que dele deve constar. É óbvio que o prazo é muito curto, mas o Ibama tem levado, em média, 394 dias para emitir o TdR, um prazo muito grande. Ademais, o TdR padece do mesmo defeito de especialização da própria condução do licenciamento. Tal documento também é de responsabilidade de um especialista muito bem preparado, porém muito bem preparado em um dos segmentos ou atributos de um processo tão complexo. E o TdR também é multidisciplinar, como quase todos os documentos de um processo de licenciamento.

No que se refere a prazos, o planejador ou o empreendedor, conforme o caso, também atua de forma equivocada. Por exemplo, são gastos, em média, até 220 dias para a elaboração do EIA/Rima. É outra vez um prazo muito curto, o que pode evidenciar a baixa qualidade do documento, prejudicando todo o processo. É impossível que em menos de 12 meses se consiga reunir uma equipe multidisciplinar e estudar todos os aspectos socioambientais associados a uma grande hidrelétrica.

Há ainda muita incompreensão do problema pela falta de conhecimento de como ele foi e é tratado ao longo do tempo. É normal que uma autoridade judicial, que não saiba como foram e são tratadas, na prática, as questões socioambientais vinculadas a uma grande hidrelétrica, conceda uma liminar, diante das informações de que os efeitos de uma referida obra possam conter lesões graves e de difícil reparação. Isso pode ser resolvido com ações de baixo custo relativo. Alguém já pensou em levar caravanas de juízes e procuradores para usinas com tratamento socioambiental complexo, como as grandes UHEs da Bacia do Iguaçu e a UHE Tucuruí, que fica no rio Tocantins, na Amazônia? Recomendo que isso seja levado a efeito e com recursos públicos. Sugiro também que sejam mostrados os erros do setor elétrico, como a UHE Balbina, que tem uma grande área alagada em relação ao que pode produzir de energia elétrica, e Itaparica, cuja solução dada para a realocação da população é até hoje muito questionada. Essas medidas fariam com que se tivesse uma melhor compreensão da questão, como a verificação da seriedade com que os problemas foram e são resolvidos.

Os planejadores e os empreendedores, sobretudo os primeiros, também parecem não ter uma compreensão precisa do conceito de ótimo global. No ambiente atual, de grande participação da sociedade em todos os problemas, a solução ótima, minimizadora de custos, não é aquela que considera apenas o ponto de vista do setor elétrico. A solução não resulta de uma rodada de um programa de computador. A solução, no ambiente atual, deve ser satisfatória, como já defendia Herbert Simon, prêmio Nobel da Economia, há mais de 40 anos. A função objetivo mudou, não é mais a minimização de um custo de expansão sujeito a várias restrições, entre elas a socioambiental. A grande resposta que deve ser dada pelo planejador é como deve ser atendida a população atual conciliando o bem-estar da população futura, que é a essência do conceito de desenvolvimento sustentável. Entendo que a população atual também pode ser atendida por meio de consumos mais eficientes, com ações mais inteligentes pelo lado da demanda.

Em outras palavras, o programa de obras do setor elétrico deve ser aquele que, ao mesmo tempo, mais se aproxima do ideal e mais se afasta do indesejável. Isso requer a abordagem do problema a partir de interesses conflitantes e nem sempre conciliáveis. Nesse contexto, se cada vez há mais restrições para a construção de usinas, sobretudo as hidrelétricas, por que, então, não atuar também do lado da demanda, estimulando consumos eficientes, que requeiram cada vez menos obras e, consequentemente, menos agressão ao meio ambiente? Isso é inteligente e eficaz, e vem sendo adotado nas economias mais modernas. Desta forma, a viabilidade de outros empreendimentos da região amazônica seria menos conflitante e mais conciliadora.

Edvaldo Alves de Santana é diretor da Aneel

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