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A mandioca como transformador energético na Amazônia e no Paraná

Na extensa Amazônia, a raiz já foi testada e aprovada para substituir o diesel por bioetanol nos sistemas isolados e até biogás. No Paraná, maior produtor do país, a riqueza energética das águas residuais das fecularias é 34x a dos esgotos sanitários.

Por Eugênio Melloni

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Unidade da GTFoods em Paranavaí, uma das três da empresa com lagoas anaeróbias para armazenar a água residual do processo de fabricação da fécula, para geração de biometano (Foto: Divulgação)

Todos sabem que os estados da Região Amazônica são os que mais sofrem com a precariedade do fornecimento de energia elétrica, principalmente nas regiões mais isoladas. E que nos municípios e comunidades do interior amazônico, com baixa demanda energética e muito distantes do sistema integrado (SIN), a energia é ofertada, em grande parte, por térmicas a diesel importado de longas distâncias, extremamente poluentes. O que poucos sabem é que existe solução local, muito mais barata que a solução importada, capaz ainda de gerar desenvolvimento socioeconômico sem agredir o meio ambiente.

Os sistemas isolados geram com baixa eficiência energética, consomem diesel por natureza caro e demandam logística complexa e também cara para se abastecer do combustível transportado por milhares de km por modal majoritariamente fluvial. O resultado é um Kwh extremamente caro, subsidiado pela chamada rubrica CCC que integra as contas de todos os consumidores de energia do país.

Os governos têm buscado resolver essa deficiência ampliando a conexão dessas localidades ao sistema elétrico interligado ou realizando leilões visando ampliar a autogeração dos sistemas isolados com diversas soluções tecnológicas como, por exemplo, a geração solar fotovoltaica.

Especialistas consideram, contudo, que essas alternativas são paliativas porque reproduzem, na prática, um equívoco de políticas adotadas anteriormente. Em miúdos, as soluções falham porque ainda dependem do diesel e, sobretudo, por não estarem alinhadas à cultura local, deixando de proporcionar com isso desenvolvimento socioeconômico atrelado à universalização do suprimento energético.

O etanol extraído da mandioca brava tem as propriedades adequadas geração de energia elétrica na Amazônia

Para eles, a solução mais adequada para garantir a oferta de energia elétrica e ao mesmo tempo endereçar questões ambientais e socioeconômicas importantes está na mandioca, literalmente enraizada na cultura regional e espalhada pelas lavouras de subsistência.

O etanol extraído da mandioca brava tem, segundo pesquisas, as propriedades adequadas para garantir a geração de energia elétrica na região a baixo custo, substituindo o poluente e caro óleo diesel nas termelétricas.

Bons resultados foram obtidos, por exemplo, no projeto ‘Geração de Energia Elétrica com Etanol da Mandioca na Amazônia’, realizado no período de 2010 a 2013 por meio de parceria do Centro de Desenvolvimento Energético Amazônico (CDEAM), da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e do Instituto Energia e Desenvolvimento Sustentável (Inedes). A pesquisa foi custeada com recursos da concessionária Manaus Energia no âmbito do Programa de P&D da Aneel.

O projeto envolveu duas frentes de pesquisa: uma abrangendo a parte agrícola, a cargo da Embrapa, visando identificar cultivares mais propícios à produção de bioetanol de mandioca; a outra frente focou na ampliação de uma termelétrica a diesel para operar também com etanol.

Biorrefinaria montada para produzir o etanol de acordo com as especificações da ANP alcançou produtividade de 150 litros de bioetanol por tonelada de mandioca

Conforme explica Rubem Cesar Souza, diretor do CDEAM, na ponta da lavoura foram selecionadas cinco cultivares da chamada mandioca brava, desenvolvidas pela Embrapa para a Região Amazônica. A mandioca brava contém maior nível de compostos cianogênicos do que a mandioca mansa, mais conhecida como aipim. Por esse motivo a mandioca brava é fatal se consumida como o aipim. Mas, curada nas chamadas casas de farinha, a mandioca produz o alimento que é básico em toda a região amazônica.

Na área de plantio, os pesquisadores registraram com as cultivares desenvolvidas uma produtividade de 25 toneladas por hectare, superando a produtividade média da Amazônia na época, de 10 t/ha. As pesquisas visaram também identificar se o cultivo familiar poderia atender a demanda da produção do energético sem prejudicar a tradicional produção de alimento.

Os pesquisadores levaram em consideração o fato de que uma família rural típica da Amazônia cultiva em torno de 0,5 a 1 hectare, com produtividade de 2 a 4 toneladas da raiz. Com as novas cultivares, um grupo familiar seria capaz de produzir em torno de 8 toneladas na mesma área , o que permitiria manter a produção de alimentos e ainda produzir grande excedente da mandioca brava para outros fins.

O projeto também montou uma biorrefinaria para produzir o etanol de acordo com as especificações da ANP. Nos testes realizados com os equipamentos, foi possível alcançar uma produtividade de 150 litros de bioetanol por tonelada de mandioca.

Na segunda parte da pesquisa, foi ampliada a capacidade de uma termelétrica a diesel com a instalação de dois grupos geradores de 250 kW na comunidade de Lindóia, município de Itacoatiara (AM), que conta com 1.107 unidades consumidoras. Em setembro de 2013, a usina termelétrica operou somente com máquinas movidas a etanol.

Nas planilhas, os pesquisadores registram que o custo do etanol ficou em R$ 3,325 por litro, considerando-se a incidência de 30% em impostos, predominantemente o ICMS. E sugeriram a isenção do ICMS, entre outras medidas, que poderiam fazer o preço do litro baixar para R$ 2,48 e o custo de geração em R$ 2.182 por MWh. Na época, usinas fotovoltaicas instaladas no estado produziam energia a um custo de R$ 3.302 por MWh. 

Após o período dos estudos, a concessionária Manaus Energia não deu continuidade ao projeto e foi, mais tarde, privatizada. Em consequência, os trabalhos foram interrompidos por falta de recursos. Rubem Cesar tem a expectativa de que as pesquisas sejam retomadas em 2025 envolvendo novas cultivares de mandioca brava desenvolvidas pela Embrapa.

Mandioca, peixe e lixões como alternativas

O cardápio energético da mandioca da Amazônia não se restringe ao etanol. De acordo com um mapeamento realizado pelo Instituto Escolhas, organização civil que desenvolve estudos e análises econômicas para viabilizar projetos de desenvolvimento sustentável, os resíduos da produção de farinha de mandioca, juntamente com os resíduos da piscicultura e o lixo urbano, são excelentes matérias-primas para a produção de biogás.

Fecularia no Paraná: estado responde por cerca de 70% da produção nacional (Foto: José Fernando Ogura/AEN)

Segundo o estudo “Biogás: energia limpa para a Amazônia”, com o aproveitamento de resíduos da produção de farinha mandioca e da piscicultura, além dos resíduos urbanos, é possível obter 537 milhões de m3 de biogás por ano, o suficiente para a geração de 1,1 TWh de eletricidade. Essa energia é suficiente para atender 556 mil residências, ou 2,2 milhões de pessoas.

A maior parte desse potencial (98%) vem dos chamados lixões urbanos. O estudo mostra que somente 6% dos resíduos urbanos na Amazônia são aproveitados para a geração de energia, nos aterros sanitários de Manaus (AM) e Rosário (MA). O aproveitamento dos resíduos urbanos para a produção de energia oferece também uma solução adequada para os 243 lixões a céu aberto e os 51 aterros controlados que existem na região.

Para a produção de farinha de mandioca e para a piscicultura, o biogás representa ao mesmo tempo segurança energética e possibilidade de redução de custos. Nos estados da Amazônia, são produzidas anualmente mais de 500 mil toneladas de farinha de mandioca e 160 mil toneladas de peixes.

O estudo aponta que os resíduos das casas de farinha permitiriam uma produção de 6 GWh de energia elétrica. Os frigoríficos de abate de peixes, por sua vez, poderiam gerar outros 13 GWh de energia elétrica por ano.

Para Larissa Rodrigues, gerente de Projetos do Escolhas, os resultados reforçam a necessidade de criação de um programa que estimule a geração de energia elétrica a partir do biogás produzido a partir das duas atividades econômicas e dos lixões urbanos das cidades da Amazônia. Além dos benefícios ambientais resultantes, a iniciativa contribuiria para o desenvolvimento econômico sustentável, com a geração de emprego.

Biometano da fécula

O Paraná, por sua vez, é o principal estado produtor de fécula de mandioca do país, respondendo por cerca de 70% da produção nacional. Dada a grande concentração de fecularias no estado, o Centro de Tecnologia e Urbanismo (CTU) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) vem desenvolvendo desde os anos 80 uma linha de pesquisas tendo a mandioca como base para a geração de energia.

Lagoa de águas residuais da produção da fécula, produto de exportação: antes um passivo ambiental, é atualmente um ativo de proteção ambiental e gerador de biogás, graças ao alto poder energético da mandioca

O aproveitamento da água residual do processo de fabricação da fécula da mandioca para a geração de biometano é uma das principais linhas da pesquisa. O processo de fabricação da fécula exige muita água. O processamento de 1 tonelada de mandioca gera de 5 a 7 metros cúbicos de resíduos.

O potencial desse resíduo é enorme, ensinam Deize Dias Lopes e Cristiane Lurdes Andreani, respectivamente coordenador e pesquisadora do CTU. A concentração de matéria orgânica na água residual das fecularias é 34 vezes superior à do esgoto sanitário.

Estudos realizados pelo CTU mostraram que, considerando a produção paranaense de fécula em 2020, de 300 mil toneladas, foram produzidos efluentes líquidos que, uma vez convertidos em biometano, poderiam gerar até 15 GWh ao ano de energia.

Mas, até o momento, o biometano obtido da água residual tem sido destinado à produção de energia térmica pelas fecularias. Entre as conquistas obtidas a partir das pesquisas que estão sendo incorporadas pelas fecularias está a cobertura das lagoas anaeróbias das fecularias. Com isso, é possível obter o biometano e utilizá-lo no processo de secagem da fécula, substituindo o óleo diesel e a lenha. Além disso, a cobertura das lagoas anaeróbias evita que o metano vá para a atmosfera.

A GTFoods, um conglomerado da indústria alimentar, adota o método de biodigestão em três unidades dedicadas à produção de fécula de mandioca. Instaladas em Paranavaí e Cianorte, no Paraná, e em Mundo Novo, no Mato Grosso do Sul, essas unidades processam 25 mil toneladas de mandioca por mês. As unidades contam com lagoas anaeróbias cobertas por lonas, onde a água residual do processo de fabricação da fécula são depositadas. O biometano gerado é encaminhado para as caldeiras, utilizadas na secagem da fécula.

De acordo com o diretor de Novos Negócios da companhia, Aleksandro Siqueira (foto), o biometano tem se revelado um insumo confiável e eficiente. Nas unidades da empresa, substitui o óleo diesel e a lenha no processo de secagem, com ganhos ambientais e em eficiência energética, além de proporcionar redução de custos. Um dos principais benefícios desse processo é a oferta ininterrupta do biometano, mantendo a caldeira em funcionamento full time, o que reduz custos operacionais, aponta Siqueira. Ele acrescenta que o uso do biometano vem assegurando competitividade à companhia neste segmento.

 

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