Opinião

Bem-vindo, GNL

Por Redação

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O transporte de gás natural exige elevados investimentos, seja em gasodutos ou em embarcações especializadas para gás natural liquefeito (GNL). Essa infra-estrutura, desde a produção até sua entrega, pode envolver um consumo equivalente a 25% do conteúdo energético do gás, o que representa um considerável desperdício de energia e a geração de substancial quantidade de gases de efeito estufa antes mesmo de seu aproveitamento final.

No caso do GNL, são necessários investimentos na ponta do fornecimento - instalações de refrigeração, compressão e liquefação -, no local da importação - instalações de regaseificação - e no transporte criogênico. Somente no transporte, pode haver perda diária de 0,1% do gás transportado.

Mas, apesar dos elevados investimentos e custos associados, a logística do GNL pode ser implementada de forma relativamente rápida, e há disponibilidade internacional de embarcações, e também de gás em países produtores, interessados em converter reservas em receitas imediatas. A adequação ambiental também favorece o GNL em relação ao transporte dutoviário do gás, pois a construção desses dutos é em geral muito impactante aos ecossistemas por onde passam. Assim, o gás liquefeito, além da vantagem de ser uma fonte energética considerada limpa na sua utilização, tem se transformado numa opção estratégica para equilibrar a crescente demanda pelo combustível.

Nos países da Ásia, ávidos por energia mais abundante e com poucas alternativas disponíveis, é compreensível essa forte demanda. Mas, mesmo no Brasil, praticamente auto-suficiente em energia, o GNL também apresenta grandes vantagens, sendo uma opção de diversificação da matriz energética, ao mesmo tempo em que atende a diversas outras considerações políticas, nacionais e regionais.

Arma contra a Bolívia

A Bolívia, com a segunda maior reserva de gás da América do Sul, localizada próximo aos centros consumidores do Brasil e com ampla possibilidades de atender à crescente demanda prevista para o gás aqui, já esboçava usar essas condições para obter mais vantagens nas negociações com a Petrobras e com o Brasil. Essas vantagens se dariam tanto no fornecimento - buscando maximizar o preço do gás exportado - como em outras questões, estabelecendo condições desfavoráveis de operação para a Petrobras no país vizinho. Os bolivianos estavam certos de que seriam os fornecedores mais importantes do energético para o Brasil e que essa posição lhes permitiria extrair o máximo de benesses em suas negociações, inclusive no âmbito da política regional latino-americana. De fato, durante a crise da nacionalização das refinarias brasileiras da Petrobras na Bolívia, essa tentativa ficou clara.

Para contornar essas aspirações, desde antes da crise da nacionalização das refinarias, a Petrobras começou a sinalizar que redirecionaria sua política de suprimento e investimentos em gás a fim de reduzir a dependência do fornecimento boliviano e ampliar o fornecimento nacional. Infelizmente, era sabido que os projetos de produção dos novos campos da Petrobras, como Mexilhão, na Bacia de Santos, não poderiam ser adiantados suficientemente rápido para neutralizar a necessidade de ampliar as importações da Bolívia. Isso supostamente condenaria o Brasil a ficar em posição de desvantagem em relação às vontades bolivianas.

As tentativas de desarmar essa situação só passaram a ter importância expressiva quando o GNL foi utilizado como peça-chave da estratégia da Petrobras. Com isso, e com a efetivação posterior dos recentes acordos para importação de GNL de Nigéria, Catar, Omã, Argélia e até da Argentina, a petroleira conseguiu assegurar um volume superior ao importado da Bolívia (35 milhões de m³/dia, contra 30 milhões de m³/d da Bolívia). Em poucos meses, do início de 2007 até meados do ano, foi afastada de vez a perspectiva de a Bolívia exercer um papel dominante em suas negociações com o Brasil.

Nessa tática, a Petrobras foi respaldada pelo governo brasileiro, que, a despeito do relacionamento pessoal entre os presidentes Lula e Evo Morales, decidiu apoiar a política de diversificação de fontes de gás da estatal e ainda incluiu no PAC a construção do gasoduto Coari-Manaus, que adicionará 4,5 milhões de m³/d à rede de distribuição nacional de gás natural.

Se a Bolívia estava determinada a obter vantagens para atender a seus interesses nacionalistas e políticos, em detrimento dos interesses da Petrobras e do Brasil, agora se viu obrigada a reconhecer que a petroleira deu a volta por cima e que o GNL foi sua arma mais eficaz. Não há dúvida de que a crise da nacionalização das refinarias foi resolvida relativamente rápido devido a essa mudança no cenário. As condições de nacionalização não foram favoráveis financeiramente em relação aos investimentos da Petrobras nas unidades, mas a perda de algumas dezenas de milhões de dólares foi tolerável, num contexto onde a Petrobras mostrou com clareza que havia superado qualquer tentativa boliviana de assumir posição mais forte nas demais negociações. Sobretudo considerando que as refinarias representavam a menor parte dos investimentos da Petrobras na Bolívia, que somam bilhões de dólares em instalações de produção e transporte de gás, o resultado pode ser considerado altamente favorável.

Dúvida no Gasoduto do Sul

Os projetos de GNL também permitiram atender à demanda de diversos centros consumidores das regiões Norte e Nordeste sem ter de depender do grandioso projeto Gasoduto do Sul (Venezuela-Brasil-Argentina). Na atual conjuntura, estrategistas vêem esse fantasioso projeto, estimado em mais de US$ 23 bilhões e apoiado pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, com desconfiança. O duto representa uma tentativa de integração política e ideológica, mais do que um projeto tecnicamente fundamentado por uma análise de seu custo e do possível retorno econômico-financeiro que poderia gerar, em especial para o Brasil.

É certo que o Brasil deve continuar a perseguir uma política de médio e longo prazo que promova a integração energética da América do Sul, incluindo, entre outras modalidades, um sistema dutoviário para gás de países como Peru, Bolívia e até Venezuela. Mas não deve ficar refém de pressões oportunistas desses mesmos países, tampouco permitir que importantes projetos de infra-estrutura se transformem em bandeiras políticas de nossos vizinhos.

A meta da integração política, econômica e energética da América do Sul transcende as personalidades de todos os atuais governos da região e representa um importante objetivo estratégico de longo prazo. Mas a opção pelo GNL é uma arma tática de grande valor no âmbito das negociações, como forma de demonstrar que o Brasil defenderá seus interesses sem sucumbir a pressões exageradas de seus parceiros naturais, por mais que uma eventual integração ampla seja do interesse de toda a região.

No momento, devido a seu elevado custo, o Gasoduto do Sul desviaria recursos de muitos outros projetos de grande importância estratégica para a Petrobras e para o Brasil, justamente quando a companhia ensaia ampliar a área de influência brasileira e diversificar sua presença internacional depois de muitos anos com pouca expressão no exterior. Sem cercear o direito de considerar a modalidade dutoviária como alternativa para o longo prazo, a atual conjuntura não favorece o duto.

Como todo gasoduto de longo curso, o projeto também implicaria custos e perdas inerentes ao transporte dutoviário de gás, especialmente em longas distâncias. As estações de compressão e demais instalações requeridas podem representar perdas superiores às envolvidas na cadeia logística do GNL. Nas condições de demanda encontradas em nosso continente hoje, em que os volumes demandados ao longo do trajeto proposto para o Gasoduto do Sul ainda não são suficientemente elevados e as distâncias são enormes, o transporte dutoviário apresenta desvantagens econômicas. A distribuição geográfica da demanda das capitais litorâneas do Brasil favorece ainda mais a opção pelo GNL como modalidade de fornecimento imediato mais viável, através da construção de instalações de regaseificação nos pontos de consumo.

No longo prazo, o Gasoduto do Sul poderia ajudar o Brasil a formar uma parceria com os demais países participantes do projeto, com benefícios estratégicos em relação ao envio de recursos energéticos para fora da região, o que é discutido no momento para o gás do campo de Camisea, no Peru. No curto prazo, porém, o gasoduto prejudicaria as parcerias alternativas com outros países onde a Petrobras busca se estabelecer e expandir a presença brasileira, que o presidente Lula tanto trabalhou para ampliar em novas fronteiras internacionais como África e Oriente Médio. Levado adiante agora, por pressão de nossos parceiros, seria um projeto que fere os interesses do Brasil, e sem dúvida o governo brasileiro agradece o surgimento de uma opção que afasta sua iminente decisão, sem ter de assumir a desconfortável posição de dizer não a aliados pessoais e ideológicos.

Ao assumir a opção pelo GNL, a Petrobras, como empresa que visa maximizar o retorno para seus acionistas, aí incluído o governo, agiu de forma exemplar, protegendo seus interesses e os interesses soberanos do país.

Ainda sobraram, no entanto, vantagens para a Petrobras em outras questões. Com a introdução da variável GNL na matriz energética brasileira, a empresa pôde apresentar uma logística de suprimento diferente daquela originalmente prevista para importantes consumidores, como, por exemplo, a siderúrgica Ceará Steel. Ficou mais fácil justificar modificações nas condições de suprimento, como aumento do preço, pois o gás liquefeito tornou evidentes as mudanças na matriz energética utilizada para suprir esses projetos, e permitiu relacionar o custo do gás fornecido ao custo do GNL importado, reduzindo o risco de um spread desfavorável à Petrobras.

Por tudo isso, o GNL é bem-vindo ao Brasil.

Cleveland Maximino Jones é consultor na área de Petróleo , Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável

Hernani Aquini Chaves é professor doutor da Faculdade de Geologia da Uerj

José Diamantino Dourado é professor doutor do Cefet-RJ

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