Opinião
Ericson de Paula
A integração energética regional tem nas interconexões um importante instrumento para maximizar o aproveitamento dos recursos existentes entre os países e oferece imprescindível alternativa de complementação à disponibilidade local. Um exemplo emblemático é o que se observa entre Argentina e Brasil, que possuem regimes hidrológicos complementares - as cheias daqui coincidem com as secas de lá, e vice-versa -, o que permite que excedentes de um país sejam exportados para outro. Além disso, o Brasil apresenta um sistema predominantemente hidrelétrico, e a geração argentina é fundamentalmente termelétrica, o que pressupõe também a possibilidade de que um sistema ofereça complementação ao outro.
Também há que se considerar de relevância a diversidade de carga, que depende da hora do dia e pode ser aproveitada pela diferença de fuso entre os países. Nesta dimensão se insere a importância dos acordos de integração energética entre países e blocos da região e cujas vantagens se descrevem a seguir. Mercosul e Comunidade Andina de Nações São diversas as iniciativas de integração nas duas regiões. Sua evolução mostra que, hoje em dia, a busca pela integração energética ganha impulso com a polêmica proposta do Gasoduto do Sul.
Se até agora havia mais projetos de integração binacional, o gasoduto envolve Venezuela e países do Mercosul, aproveitando as interconexões gasíferas da região. Esse projeto deverá contribuir para a harmonização dos marcos regulatórios, antiga aspiração dos especialistas do setor. Essa integração está sendo impulsionada pelas crises vividas pelos países sul-americanos no setor, agravadas pela instabilidade política pela qual passaram Argentina e Bolívia recentemente. A interconexão energética dos países sul-americanos, através de linhas de transmissão e gasodutos, enfrenta dificuldades proporcionadas pela diversidade dos sistemas regulatórios e da formação de preços nos mercados dos países.
Barreiras e soluções A proposta do Gasoduto do Sul enfrenta dificuldades tais como o custo total do projeto e seu financiamento; a travessia do duto pela densa selva amazônica e seu impacto ambiental; e o déficit regulatório. O fato de o Brasil investir U$ 18 bilhões na produção doméstica e a Argentina estar investindo na descoberta de novas reservas e na produção também se contrapõe à viabilidade dessa proposta. Outro obstáculo ao Gasoduto do Sul é de natureza política: os países abastecidos pelo gás estariam muito vulneráveis à Venezuela - o único fornecedor -, o que traria risco semelhante ao ocorrido no começo de 2006, quando a Rússia suspendeu o fornecimento de gás à Ucrânia.
Por outro lado, o gasoduto contribui para a solução do problema de infra-estrutura energética. Isso porque, no caso do gás, a exigência de regras claras tem peso maior devido a algumas particularidades: não se pode armazená-lo com a mesma facilidade do petróleo; necessita de infra-estrutura mais sofisticada e cara; e justamente por isso os contratos de fornecimento são firmados antes do início dos investimentos. Como última barreira, há as recentes e repetidas manifestações sociais que provocaram instabilidades políticas e conflitos históricos entre os países da região.
Um fato recente é a nacionalização do gás da Bolívia, a qual retomou, através da YPFB, a exploração do gás e também estabeleceu um reajuste de preços fora dos termos do contrato. Além da incerteza causada pela instabilidade política e pela falta de segurança jurídica, existem ainda fatores históricos:
A Bolívia mantém um conflito com o Chile desde a época em que este tomou sua saída para o mar durante a Guerra do Pacífico (1879-1883). Conflito como este, que já impediu a implementação do projeto de exportação do gás ao mercado norte-americano, constitui desafio fundamental para o avanço da integração regional.
Na Argentina, a instabilidade política se manifestou como conseqüência de uma forte crise econômica em 2001, com uma brusca queda de investimentos em novas explorações de gás natural e em eletricidade, o que impactou o abastecimento interno e as exportações para países da região, com reflexo negativo pelo descumprimento dos contratos entre agentes particulares.
Também ocorrem, no entanto, bons exemplos de acordos energéticos, como os referentes aos aproveitamentos binacionais de Itaipu e Yaciretá, os quais, mesmo diante de conflitos políticos, têm mantido o estrito cumprimento dos compromissos firmados em seus contratos. Outro bom exemplo é o da interconexão elétrica entre Colômbia e Equador, que serve como modelo para as interconexões da Comunidade Andina e que gera aos dois países retorno sobre os investimentos, melhor qualidade operacional do sistema elétrico e custos mais baixos. Este sucesso se deve à existência de um acordo que permite transações livres entre agentes, com regras unificadas e harmonizadas, apesar de não haver estruturas legislativas permanentes na região.
Mercado Comum Centro-Americano, Comunidade do Caribe e México Na América Central estão os maiores intercâmbios energéticos, apesar da pequena infra-estrutura da região. Hoje em dia existem infra-estruturas temporárias, que permitem algum tipo de transação, mas se espera para os próximos anos a entrada em operação de um sistema de interconexão que possa incrementar o intercâmbio. Trata-se do Sistema de Interconexão Elétrico entre os países da América Central (SIEPAC), que incentivará o desenvolvimento de um mercado atacadista regional para transações de energia elétrica e permitirá, por exemplo, a uma distribuidora que enfrenta pico de demanda adquirir eletricidade de outro país. O SIEPAC também será integrado ao Plano Puebla-Panamá (PPP), uma iniciativa regional de integração, para que se desenvolva uma infra-estrutura articulada entre América Central e México, facilitando a implementação de futuras interconexões elétricas.
Um outro acordo que propõe a criação da Petrocaribe tem por objetivo a conservação dos recursos energéticos não-renováveis e a solidariedade compartilhada entre seus membros, de modo a assegurar o acesso à energia a preços justos, no marco de integração energética entre Caribe e América Latina. Esse acordo se baseia nos acordos de São José e de Cartagena, já existentes, com a vantagem de melhorar as condições de preço e financiamento para o fornecimento de petróleo. Barreiras e soluções Estruturas institucionais de integração em pleno funcionamento constituem condição imprescindível para que entre em vigor o SIEPAC, uma linha de transmissão entre Guatemala e Panamá, financiada pelo BID. Para isso, o projeto prevê a criação de um ente regulador - a Comissão Regional de Interconexão Elétrica - e um operador do sistema elétrico - a Agência de Operação Regional - na América Central.
A perspectiva de um acordo de integração gasífera para fornecimento de energia a partir da Colômbia, México e Trinidad e Tobago ou Venezuela para a América Central viu-se comprometida, de acordo com o Departamento de Hidrocarbonetos de Honduras, pela alternativa do projeto termelétrico a gás liquefeito no Porto Cortés e do SIEPAC, o que atenderia à demanda elétrica da região. Iniciativa de integração dos países da América Central com o México, o Plano Puebla-Panamá, de 2001, apresenta outra importante barreira: o mito criado pela sociedade de que serão financiadas centrais hidrelétricas que inundarão sítios arqueológicos e reservas naturais de populações indígenas. Também ocorrem resistências à construção de vias de transporte terrestre e fluvial, os quais na realidade têm por objetivo facilitar o intercâmbio comercial, o desenvolvimento do turismo e das telecomunicações, mas são orientadas para o desenvolvimento sustentável e, em especial, para a prevenção de desastres naturais.
O acordo de São José, pelo qual México e Venezuela fornecem petróleo aos países do Caribe, tem sido uma importante iniciativa desde 1980, sobretudo porque os preços são compensados por melhores condições de financiamento. O México vetou a inclusão de Cuba, alegando motivos comerciais. O acordo de Caracas foi criado em 2000 para complementar o fornecimento de petróleo do acordo de São José e com condições vantajosas de financiamento pela Venezuela. Um acordo energético bilateral entre Venezuela e Cuba foi firmado pouco depois do acordo de Caracas e tem sido amplamente criticado com o argumento de que se estaria trocando petróleo por serviços sociais e outras facilidades.
Esse acordo foi denunciado no Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela e a denúncia foi rejeitada, com o argumento de que proporcionava apenas condições mais vantajosas de financiamento. Conclusões e recomendações Recentes controvérsias contratuais entre agentes privados, decorrentes de conflitos regionais, têm sido dirigidas a cortes internacionais dos EUA e Europa. Considerando-se que todos os países da América do Sul têm seus agentes reguladores mais ou menos estruturados, recomenda-se que estes sejam os instrumentos institucionais de solução de conflitos em primeira instância. Caso o conflito não seja resolvido neste nível, propõe-se um processo de mediação em uma instituição regional, como, por exemplo, a Organização Latino-Americana de Energia (Olade).
Diante de uma falta de entendimento neste outro nível, propõe-se que a matéria seja dirigida aos tribunais regionais, em vez de aos tribunais internacionais, por sua familiaridade com aspectos políticos, culturais, econômicos e sociais, componentes intrínsecos do processo de solução de controvérsia local. Ante essa perspectiva, será fundamental melhor preparar tecnicamente essas instituições, especializando-se nessa matéria. Ao dirigir a solução desses conflitos para tribunais regionais, aumenta-se a possibilidade de celeridade do processo e redução de seus custos. Fortalecem-se as instituições envolvidas no cumprimento de contratos e reduz-se a incerteza proporcionada por interferências externas ao ambiente jurídico-regulatório.
* Ericson de Paula é Doutor em Energia pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor Executivo da DCT Energia