Opinião
As hidrelétricas e o efeito estufa
A questão das mudanças climáticas tem sido motivo de grande preocupação por parte de governos, tanto de países desenvolvidos como de países em desenvolvimento. A partir de resultados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, sigla em inglês), há um entendimento entre um número importante de cientistas de que o dióxido de carbono e o metano produzido por atividades antrópicas são os responsáveis pelo aumento da temperatura global observado nos últimos 100 anos, e a conseqüente mudança do clima planetário.
Trata-se de uma visão dominante, mas não unânime, porque há ainda alguns cientistas – embora poucos – que atribuem o inquestionável aquecimento a outras causas. A despeito da celeuma, os países e as empresas têm sido cada vez mais cobrados quanto à emissão de gases que incrementam o efeito estufa e contribuem para mudanças climáticas, sobretudo o dióxido de carbono e o metano.
O setor energético e o de transportes são constantemente apontados, em escala mundial, como os principais vilões do processo, devido à queima de combustíveis fósseis. No Brasil, como as hidrelétricas são responsáveis por mais de 80% da energia elétrica consumida pelos brasileiros, deveríamos ser festejados e reconhecidos pela comunidade internacional como um país que produz eletricidade de forma renovável. Isso porque a água que funciona como “combustível” das turbinas é continuamente reposta pelo ciclo hidrológico, que, por sua vez, depende da energia solar. Entretanto, essa aparente “inocência” da hidreletricidade está sendo colocada sob suspeição por conta de uma questão ainda mal conhecida pela Ciência.
Trata-se da emissão de gases de efeito estufa pelos reservatórios hidrelétricos devido à decomposição anaeróbica do material orgânico, principalmente o depositado no fundo, onde existe pouco oxigênio. Este é um fenômeno que ocorre de forma natural em áreas alagadas e pantanosas no mundo todo. Alguma emissão desse gás ocorre por borbulhamento, difusão na superfície do lago e descompressão do escoamento depois de passar pelas turbinas. Sobre isso não há dúvida.
Todavia, há ainda pouco conhecimento sobre quanto gás é emitido, e como essa quantidade diminui com a decomposição do material orgânico remanescente na área alagada. Em torno dessa questão, eminentemente científica, algumas ONGs ideológicas perceberam um flanco desguarnecido para atacar a alternativa hidrelétrica.
No estágio atual, não há uma relação bem-estabelecida e universalmente aceita entre a taxa de produção e liberação de metano e a taxa de renovação da água, a geometria do reservatório e as características da cobertura vegetal da área alagada. Na realidade, não há sequer consenso entre os cientistas com relação à mensuração da emissão e extrapolação de dados de um local para outro.
Assim, não surpreende que ainda seja difícil separar o que seria a emissão de gases causada pela ação antrópica em questão (construção do reservatório) de duas outras fontes de emissão: (a) a emissão natural existente em área densamente vegetada e periodicamente inundada, como é o caso da planície amazônica; (b) a emissão antrópica causada pelo lançamento de esgoto ‘in natura’ por municípios lindeiros aos reservatórios.
Nesse contexto, é preciso reforçar a produção científica já alcançada pelas equipes pioneiras, por exemplo, da Coppe/UFRJ, por meio de recrutamento de novos pesquisadores para trabalhar no tema. É claro que, a todos se impõe neutralidade com relação a posições preconcebidas, tanto a favor quanto contra as hidrelétricas. Para isso, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) incluiu “a emissão de metano” entre os tópicos prioritários para a alocação dos recursos que as concessionárias são legalmente obrigadas a destinar às atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D). A Aneel divulgará em breve as diretrizes para a realização de projetos cooperativos de P&D entre as empresas do setor elétrico, buscando a sinergia e a coordenação de esforços.
Em paralelo, já se nota uma mobilização de outras instituições para aprofundar o conhecimento científico sobre a emissão de metano dos reservatórios. A International Hydropower Association (IHA) e o Programa Hidrológico Internacional da Unesco (PHI), por exemplo, promoveram um workshop internacional em Foz de Iguaçu com pesquisadores de todo o mundo e representantes de empresas de energia e setores econômicos para debater o tema.
Ao final, foi produzido um documento de orientação (http://rhama.net/ghgstatus.pdf) que prevê um programa para os próximos três anos, contendo a preparação de um guia para medição dos gases de reservatórios, o desenvolvimento de metodologias de avaliação dos reservatórios e a elaboração de medidas preventivas para redução das emissões. O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) incluiu este assunto de forma pioneira em seu inventário nacional, assim como o Ministério de Minas e Energia (MME), em parceria com a Agência Internacional de Energia (IEA, sigla em inglês).
A comunidade científica do Brasil pode e deve se engajar nesse esforço para aprofundar o conhecimento sobre o tema. Mãos à obra!
Jerson Kelman é ex-presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH), professor da Coppe/UFRJ e diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
Carlos Tucci é ex-presidente da ABRH, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, e coordenador do programa internacional de avaliação de gases de efeito estufa da IHA e Unesco
Benedito Braga é ex-presidente da ABRH, professor da USP, presidente da Comissão Brasileira do Programa Hidrológico Internacional da Unesco e diretor da Agência Nacional de Águas (ANA)
Luiz Pinguelli Rosa é diretor da Coppe/UFRJ e Secretário Executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas e ex-presidente da Eletrobrás