Opinião

Lições da primeira década da regulação do setor de energia no Brasil

Por Redação

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Desde meados dos anos 80 mais de uma centena de países promoveram mudanças estruturais e institucionais na organização de sua indústria energética.

Um traço marcante desse movimento foi a criação de agências reguladoras, às quais foi atribuída, além das funções tradicionais de regulação, a missão de organizar o novo processo de entrada de novos agentes nessas indústrias. Em todos os países, a criação de órgãos de regulação setorial redefiniu as fronteiras de competência dentro do próprio Estado.

O Brasil se inscreve nesse vasto conjunto e está completando a primeira década da criação de agências reguladoras. No entanto, o exercício da regulação em mercados energéticos liberalizados se revelou uma tarefa muito mais complexa do que se imaginava. Por isso, a regulação econômica desses setores ingressa hoje numa nova fase, marcada pela franca revisão de sua missão, objetivos e instrumentos. Na raiz desse aperfeiçoamento regulatório e institucional estão algumas experiências malsucedidas de reforma e de ação regulatória.

Cabe observar, porém, que o fracasso de reformas em alguns países tem ampliado a intervenção do Executivo e do Legislativo nas agências, interferindo, na prática, na autonomia dos reguladores, mesmo em países onde essa autonomia é considerada o atributo principal da atuação do regulador, como nos EUA. O significado deste conflito está na dificuldade de regular mercados com um número crescente de agentes e de relações contratuais, elevando os custos de transação do processo regulatório e exigindo revisões permanentes dos desenhos institucionais.

Em particular, o caso da indústria elétrica na Califórnia revelou falhas de regulação de mercados oligopolistas e de desenho institucional. Este episódio é considerado exemplar em problemas inerentes às reformas regulatórias. Não obstante a tradição secular de regulação de monopólios, não foi possível evitar uma séria crise de suprimento. Além disso, houve intervenção do governo estadual nas tarefas da Public Utility Commission da Califórnia e o órgão de regulação federal - numa atitude sem precedentes na história da regulação americana - passou a adotar posturas mais proativas, estabelecendo um conjunto de recomendações para aqueles estados que desejassem empreender reformas na indústria elétrica.

As novas formas de regulação que surgiram nos anos 90 para atender à necessidade de se criar um ambiente competitivo ainda representam um desafio aos órgãos reguladores na maior parte dos países que optaram por reestruturar sua indústria energética.

Mesmo nos países desenvolvidos, observa-se que a implementação de reformas e a construção de um novo marco regulatório é, na verdade, um processo de aprendizagem institucional, que se traduz, em última instância, num exercício de tentativa e erro. Não é por acaso que, apesar de ser referência para as reformas dos setores de infra-estrutura, o Reino Unido também revisou, no fim da última década, o marco regulatório de energia. Em 1997, com a mudança do governo britânico, novas mudanças foram empreendidas. As mais significativas no plano regulatório foram a fusão dos órgãos de regulação dos setores de gás (Ofgas) e de eletricidade (Offer), que deu lugar a uma nova agência responsável por regular os dois mercados (Ofgem - Office of Gas and Electricity Markets).

A multiplicação recente do número de órgãos reguladores em todos os países ampliou a variedade e a qualidade do exercício da regulação. As agências ainda não atingiram a plena maturidade, e qualquer análise comparativa de sua estrutura e desempenho pode revelar a imensa variedade de situações de um país a outro. Não obstante essas diferenças, a atuação dos reguladores deve estar orientada para dois objetivos centrais: a credibilidade para o exercíco de suas tarefas; e a consolidação de sua posição em matéria de inteligência setorial.

Para atingir tais objetivos, um atributo da agência freqüentemente destacado é o da autonomia ou independência. Idealmente, o órgão regulador deve ser 'autônomo' ou 'independente' e agir de acordo com o interesse público. Embora os termos autonomia, independência e interesse público possuam diversas acepções, sua identificação na criação das agências é quase imediata, seja em trabalhos especializados ou nos próprios documentos dos órgão reguladores.

Uma vez que constituem parte integrante da administração pública e suscetíveis a prestar contas de suas ações, o que seria desejável é dotar as agências de autonomia financeira e decisória, pois prescindiriam de outros órgãos para a constituição de seu orçamento e para o seu processo de tomada de decisões.

As agências recebem, por via legal, um campo de atuação com liberdade, o que não significa que não há limites para seus atos. Em vários países, a autonomia conferida às agências é estrutural e institucional, e por meio dela o ente regulador poderá exercer suas atividades dentro de um regime gerencial, buscando rapidez e eficiência. Em outros ela é fortemente limitada. E ao contrário do que se preconiza, a autonomia não é regra em muitos países desenvolvidos.

Na Espanha, na Bélgica e nos países nórdicos, o órgão regulador preserva o atributo de concentrar a inteligência setorial, mas é um órgão consultivo do ministério. Em outros países, a autonomia é limitada pela assimetria na relação de forças do regulador com o Executivo e/ou com as empresas reguladas. Na França, por exemplo, o regulador existe, mas é considerado fraco ante a posição dominante da EDF. Por fim, a autonomia pode variar ao longo do tempo: um órgão regulador pode ser mais ou menos independente no processo de tomada de decisões em função da orientação política governamental.

Abordagens conceituais à parte, o que o regulador encontra na prática é um conjunto de agentes reais perseguindo interesses distintos. A missão principal do regulador é mediar as relações entre esses atores. Ainda que as tentativas de maior interação com esses grupos na detecção de suas necessidades possam ser diversas e inovadoras*, a tarefa de interpretar o que é de interesse público continua complexa.

Este aspecto se torna muito mais grave em situações de crise. Em tais circunstâncias, é comum ocorrer a redução das missões delegadas e da autonomia das agências. Em situações extremas, o Executivo pode julgar que sua credibilidade está em risco por atos do regulador, como no caso californiano. Conseqüentemente, não é raro o recurso à centralização das decisões no Executivo como uma tentativa de solução da crise. Além do caso californiano, o racionamento de eletricidade no Brasil, em 2001, e a recente crise aérea no país são exemplos da quase inevitável centralização da coordenação das ações pelo Executivo, em detrimento do órgão regulador.

Desse modo, não é surpreendente que esteja em curso no Brasil um processo de revisão e de aperfeiçoamento das estruturas regulatórias de todos os setores. O projeto de lei das agências reguladoras evoluiu bastante desde sua primeira versão, em 2003. Ele representa um avanço em aspectos como mandatos, vacância, transparência e controle externo.

O projeto ainda comporta certos procedimentos novos visando evitar a captura dos reguladores por empresas reguladas e pelo Executivo: duração de mandatos não-coincidente com os do Executivo, mecanismos de responsabilização individual do dirigente do órgão, e todo um aparato que visa diminuir o poder discricionário do governo em relação à agência. Neste sentido, também vem sendo notada uma preocupação com a sustentação legal do mandato do regulador - sobre quais instrumentos jurídicos ele se apóia (em decretos ou em leis) e com que facilidade pode ser alterado pelas autoridades. Este último tema será sem dúvida influenciado pela crise aérea e fatalmente sofrerá alterações.

Uma lei que busca um figurino-padrão para as agências é bem-vinda. Mas ela estará muito longe de contemplar, de forma satisfatória, o leque de contingências regulatórias ao longo do tempo. Um exemplo é a história recente das agências federais de energia. A atuação dessas agências foi marcada, nestes primeiros dez anos, por altos e baixos. A Aneel já teve sua credibilidade seriamente afetada durante a crise de 2001. Ademais, sua atuação foi fortemente moldada pela necessidade de adaptar a regulamentação à reforma do modelo institucional do setor elétrico brasileiro. Entretanto, além de se consolidar como uma instituição especializada, tem recuperado sua credibilidade ante os agentes setoriais e consumidores, centrando suas decisões em critérios técnicos e apostando na busca da transparência. Assim, mesmo que ainda enfrente uma série de problemas organizacionais e/ou institucionais, a Aneel caminha na direção da construção dos atributos de inteligência setorial e de credibilidade.

Com a ANP, a história revela que o processo tem sido inverso. Em seus primeiros anos, a agência teve de enfrentar diversos embates com a Petrobras para implementar os dispositivos da Lei 9.478/1997 e foi muito bem-sucedida na organização do processo de entrada de novos agentes no upstream. O modelo brasileiro de leilões de blocos exploratórios se tornou referência internacional. Com o passar do tempo, porém, as ações proativas da ANP foram minguando, e o próprio processo de licitações recebeu um duro golpe com a suspensão da 8ª rodada em 2006. Tal evento afetou seriamente a credibilidade da agência e colocou um ponto de interrogação sobre o aperfeiçoamento do modelo de licitação de blocos e sobre as próximas rodadas. É bem verdade igualmente que o Executivo não tem respaldado a ANP, que, desde o início do primeiro mandato do governo Lula, sequer conseguiu completar o quadro de diretores.

Em ambos os casos, é fundamental fortalecer a orientação de defesa do interesse dos consumidores e preservar, ao mesmo tempo, as condições regulatórias necessárias para ampliar investimentos setoriais. A tarefa não é simples e não será bem-sucedida se os agentes econômicos não reconhecerem nas agências os atributos de credibilidade e de inteligência setorial. A regulação das indústrias energéticas se tornou muito mais complexa do que no passado e requer a combinação dos instrumentos tradicionais de regulação (controle de preços, de fiscalização e de qualidade dos serviços) com instrumentos de defesa da concorrência, ancorados na regulação da estrutura de mercado e da conduta dos agentes.

Apesar dos problemas inerentes à fase inicial de sua implantação, as agências devem prosseguir aperfeiçoando seus procedimentos e instrumentos e ter sua autonomia preservada para que possam aprimorar o exercício da regulação econômica no Brasil.

 

 

Helder Queiroz Pinto Junior é professor do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia (IE) da UFRJ

* Audiências públicas, workshops, divulgação de informações sobre o setor, mediação formal e informal, e arbitragem de conflitos têm sido algumas das tentativas de se alcançar este objetivo.

 

 

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