Opinião
A expansão tecnologicamente neutra da matriz elétrica
Com uma parcela crescente da energia vindo de fontes cuja produção horária varia em função da disponibilidade do recurso energético, é necessário a adoção de mecanismos de mercado mais apurados para coordenar a expansão, que atendam a todos os requisitos do sistema ao menor custo, independentemente das fontes usadas
Um dos maiores desafios para os formuladores da política energética é promover uma expansão eficiente da matriz elétrica. Em um ambiente dinâmico e de rápida evolução tecnológica, em que há cada vez mais tecnologias e fontes disponíveis para o atendimento das necessidades energéticas da população, nenhum agente dispõe de informações precisas sobre todas as alternativas.
Quando as decisões são centralizadas, a política energética torna-se vulnerável à atuação de grupos de pressão que buscam defender determinadas fontes de energia ou tecnologias, em detrimento do que seria desejável da perspectiva sistêmica.
Além disso, no setor elétrico é preciso equilibrar a produção e consumo de energia a cada instante. Com uma parcela crescente da energia vindo de fontes cuja produção horária varia em função da disponibilidade do recurso energético, a expansão por meio dos leilões de energia tradicionais – que consideram apenas o montante de MWmédios de Garantia Física de cada fonte – já não atendem às necessidades do sistema. É necessário uma especificação mais precisa dos requisitos do sistema.
É por isso que faz muito sentido a adoção de mecanismos de mercado mais apurados para coordenar a expansão.
O desenvolvimento de mecanismos de mercado tecnologicamente neutros – isto é, que atendam a todos os requisitos do sistema ao menor custo, independentemente das fontes usadas – diminui o risco de escolhas arbitrárias de fontes, tecnologias e localidades. Aliás, esta arbitrariedade foi exatamente o que vimos nos jabutis inseridos na Lei 14.182 de Desestatização da Eletrobras, que impôs: (1) a contratação de 8 GW de termelétricas a gás natural em regiões sem gasodutos; (2) uma reserva de mercado para pequenas centrais hidrelétricas de 50% da demanda das distribuidoras até se atingir 2 GW; e (3) a prorrogação por 20 anos de contratos do Proinfa.
No entanto, é necessário que tais mecanismos de mercado sejam apropriadamente desenhados para que produzam resultados eficientes. Dada a grande variedade de fontes e tecnologias, pequenas diferenças na forma de contratação podem fazer muita diferença, pois detalhes que facilitam o suprimento por uma fonte podem dificultar o suprimento a partir de outra fonte.
A pauta de Modernização do Setor Elétrico promovida pelo Ministério de Minas e Energia na Consulta Pública MME 33/2017 – e que foi em grande medida incorporada ao Projeto de Lei 414/2021 que tramita no Congresso – caminha nessa direção, ao propor uma nova sistemática de leilões com a segmentação dos produtos lastro e energia.
Em breve, o Ministério de Minas e Energia deve abrir consulta pública para avaliação de um conjunto de relatórios detalhando:
- a metodologia para definição dos requisitos do sistema a serem contratados, que seriam caracterizados com base em três produtos: lastro de produção, lastro de potência (capacidade), e energia;
- as metodologias para definição do montante de cada produto aportado por cada empreendimento de geração; e
- a sistemática de leilão combinatório para a contratação conjunta destes três produtos.
Essas mudanças buscam promover uma contratação mais aderente às necessidades do sistema, possibilitar uma divisão de custos mais equânime entre consumidores livres e regulados, e conferir maior blindagem contra a ação de grupos de pressão.
Tanto a identificação precisa dos requisitos do sistema quanto o desenvolvimento de um mecanismo de mercado tecnologicamente neutro não são tarefas triviais. As metodologias e a sistemática de leilões propostas provavelmente exigirão aperfeiçoamentos, mas os benefícios que serão aportados à nossa matriz elétrica – com destaque para uma contratação mais precisa e transparente – mais do que compensam os custos dos desafios técnicos e institucionais que precisarão ser superados.
Claudio Sales é presidente do Instituto Acende Brasil. Richard Hochstetler e Eduardo Müller Monteiro, coautores deste artigo, são diretores da entidade