Opinião
Escassez e Abundância: dois lados de nossas fontes energéticas
O setor elétrico resistiu a oito anos de hidrologias baixas sem a necessidade de adoção de medidas drásticas como um racionamento, mas as mudanças recentes da matriz trazem novos desafios, principalmente relacionados à falta de controlabilidade das fontes solar e eólica e ao descasamento do perfil horário da produção com o perfil de consumo.
- Com coautoria de Richard Hochstetler
Cerca de 70% da eletricidade gerada em 2023 foi proveniente de hidrelétricas. A predominância da fonte hídrica no sistema elétrico implica que dependemos do comportamento cíclico deste recurso natural que nos abençoa.
Reduções das vazões afluentes nos rios em que as hidrelétricas estão localizadas – como observado na época do racionamento de 2001 e no período mais recente de 2014 a 2021 – resultaram em crises no abastecimento de energia que impactaram fortemente os consumidores.
Esta situação foi agravada na última década pela entrada massiva de hidrelétricas a fio d’água que não agregaram “reservatório” ao conjunto de hidrelétricas no sistema. E, assim como no racionamento, a recente crise induziu o poder público a responder com diversas medidas para normalizar a condição em 2021.
Entretanto, o setor não é desafiado apenas nos períodos de escassez. Após oito anos de hidrologias criticamente baixas, no ano de 2022 houve uma reversão dos níveis de afluência, o que permitiu a recuperação dos reservatórios.
Em 2023, com nossas hidrelétricas com reservatórios cheios, as hidrelétricas enfrentaram outro desafio: a alta incidência dos chamados “vertimentos turbináveis”, situações nas quais as hidrelétricas precisam liberar a água de seus reservatórios sem passar pelas turbinas, “desperdiçando” a água sob a perspectiva energética. Nos primeiros 11 meses de 2023, os vertimentos turbináveis já correspondiam a 13% da geração hidrelétrica. Buscando mitigar o desperdício, o poder público permitiu a exportação para a Argentina e para o Uruguai desta energia que seria vertida.
A aleatoriedade da disponibilidade dos recursos energéticos naturais não afeta apenas as hidrelétricas. Os empreendimentos eólicos e solares também já sofrem efeitos semelhantes com cortes de geração (ou curtailment) em momentos nos quais sua produção supera a demanda ou a capacidade de escoamento do sistema.
Análises detalhadas dos fenômenos acima (vertimentos turbináveis de hidrelétricas e curtailment de eólicas e solares) são apresentadas no estudo “Programa Energia Transparente – 17ª. edição”, disponível em www.acendebrasil.com.br.
Olhando para a frente, no início de 2024 já convivemos com um alerta da escassez de água decorrente do fenômeno atmosférico-oceânico El Niño na região do Amazonas, região que concentra os principais empreendimentos hidrelétricos construídos nos últimos anos.
O setor elétrico resistiu a oito anos de hidrologias baixas sem a necessidade de adoção de medidas drásticas como um racionamento, mas as mudanças recentes da matriz elétrica trazem novos desafios, principalmente relacionados à falta de controlabilidade das fontes solar e eólica e ao descasamento do perfil horário da produção de eletricidade com o perfil de consumo.
A fim de endereçar estes desafios, o poder público vem estudando formas para melhor qualificar e quantificar os novos atributos necessários do sistema. Este processo foi iniciado com a adoção dos Leilões de Reserva de Capacidade na forma de potência que, de forma inédita, visam a contratar requisitos para prover potência nos momentos de maior escassez. Este tipo de certame deve eventualmente evoluir para a contratação de diferentes formas de lastro e de energia nos futuros leilões de energia, assim como para a adoção de mecanismos que proporcionem uma estrutura de incentivos (premiando ou punindo os agentes) que seja capaz de internalizar os riscos envolvidos na oferta destes novos ´produtos´ energéticos que são tão importantes para o novo perfil de nossa matriz elétrica.
Uma das características mais marcantes do setor elétrico é a larga antecedência requerida para a implantação de empreendimentos. Portanto, é crucial que as políticas públicas evoluam rapidamente para viabilizar a oferta dos recursos necessários para atender aos novos desafios que já se avistam no horizonte.
Claudio Sales e Richard Hochstetler são do Instituto Acende Brasil e escrevem na Brasil Energia a cada dois meses.