Opinião
O papel da garantia física na questão do GSF
A depender do desenho de mercado e da regulação, a questão física do risco hidrológico poderia ser absorvida sem uma crise financeira e regulatória sistêmica
Há pouco mais de cinco anos, em novembro de 2014, a Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia Elétrica (Apine) encaminhou à Aneel proposta para mitigar os efeitos econômicos e financeiros do deslocamento da geração hidrelétrica em função do despacho termelétrico fora da ordem de mérito. Era o início da controvérsia sobre o risco hidrológico, que também seria conhecido pelo acrônimo em inglês de GSF (Generation Scaling Factor).
A petição da Apine foi negada pela Aneel em agosto de 2015. Todavia, na mesma data, foi publicada a Medida Provisória nº 688, autorizando a repactuação do risco hidrológico, conforme condições debatidas em Audiência Pública (32/2015) da Aneel. A MP foi convertida na Lei nº 13.203, e regulada pela Resolução Normativa nº 684, em dezembro de 2015.
A solução apresentada em 2015, entretanto, foi aceita apenas pelos geradores que operavam no Ambiente de Contratação Regulada, de modo que o impasse no Ambiente de Contração Livre permanece até hoje judicializado, com o represamento de valores da ordem de R$ 8 bilhões.
O destravamento do mercado de energia elétrica pode ocorrer por meio de decisão judicial ou da deliberação do PLS nº 3.975, foi devolvido pela Câmara dos Deputados ao Senado em caráter terminativo em julho de 2019 e com a tramitação paralisada desde então. Ainda assim, permanece a discussão subjacente sobre as causas estruturais e regulatórias do GSF e de como evitar que o problema reapareça no futuro.
Do ponto de vista estrutural, contribuem para a manutenção dos reservatórios deplecionados e redução da geração hidrelétrica os efeitos das mudanças climáticas e da expansão da carga, aliados à alteração da matriz elétrica baseada em fontes termelétricas com Custo Variável Unitário (CVU) elevado e em fontes renováveis com CVU zero e baixa despachabilidade (hidrelétricas a fio d’água, eólicas e fotovoltaicas). Apesar disso, a depender do desenho de mercado e da regulação, a questão física do GSF poderia ser absorvida sem uma crise financeira e regulatória sistêmica.
Nesse sentido, tem-se questionado se o arranjo regulatório de nosso mercado que segue o modelo de tight pool, com despacho pela função de custo futuro do NEWAVE, não seria mais sujeito à necessidade de despacho fora da ordem de mérito do que os modelos de loose pool, com despacho pela oferta. Será que o arranjo do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) não se tornou anacrônico? E a contratação de energia de reserva para cobertura do gap de garantia física, não agravou o problema?
Por outro lado, tem-se dado pouco destaque para o papel da garantia física, como instrumento de confiabilidade sistêmica, na questão do GSF. A garantia física de um empreendimento é definida pela sua contribuição sistêmica à oferta de energia dado o critério de suprimento do MME. Também é adotada como a métrica fundamental da adequabilidade da oferta do sistema e é utilizada para dois fins fundamentais no Brasil: definir a quantidade máxima de energia que um gerador pode comercializar e, no caso das hidrelétricas, a cota de participação no MRE.
Ocorre que a garantia física, que já foi chamada de energia firme e energia assegurada, e que agora deve ser rebatizada como lastro, é uma medida estatística relativamente volátil e, portanto, nada firme. A Consulta Pública MME nº 85/2019, inclusive, chegou a recomendar sua revisão anual. Além disso, com a maturidade do mercado, os geradores atualmente vendem montantes abaixo da garantia física, que se tornou uma restrição folgada. Sendo assim, com a discussão da separação da contratação de lastro e de energia, é preciso debater a necessidade de utilização da garantia física (lastro) por empreendimento. A garantia física poderia ser abolida e substituída pela contratação de lastro sistêmico? Qual a inconveniência de se permitir que os geradores vendam o montante de energia que desejarem?
Tiago Barros é sócio-diretor da RegE Consultoria e ex-diretor da Aneel