Opinião

Precisamos falar sobre os contratos legados no mercado de gás

O transporte é peça-chave para alcançar a plena liberalização do mercado de gás no País. E um ótimo começo para esse objetivo passa pela ANP, com a exclusão dos contratos legados do cálculo tarifário e a realização de uma revisão quinquenal de tarifas, exatamente como prevê a legislação vigente e recomendam as boas práticas internacionais.

Por Bruno Armbrust

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  • Com coautoria de Ignacio Pascual e Sergio Soares, consultores da ARM Consultoria

Um dos pontos mais nebulosos do mercado brasileiro de gás natural, com toda certeza, são os contratos legados de transporte celebrados entre a Petrobras e as transportadoras de gás.

E é por isso que tomamos a liberdade de pegar emprestado o título de um ótimo artigo escrito em 2021 por Luiz Barroso e Bernardo Bezerra (consultoria PSR) dedicado a tema similar no setor elétrico.

O título se encaixa porque o assunto volta à tona com uma recente Consulta Pública da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a CP 17/2023.

Aberta no final de dezembro, a CP 17/2023 trata da proposta de tarifas da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) para o ciclo 2024-2028. E a proposta é condicionada aos já citados contratos legados, algo que não deveria ocorrer, dadas a legislação e a regulação vigentes que estabelecem claramente as regras e a obrigatoriedade de realização periódica de revisões das tarifas de transporte pela ANP.

Cabe ressaltar que nos distintos processos de propostas tarifárias não foi percebida uma padronização de critérios adotados pela ANP, conforme indica a resolução 03/2022 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).  Tampouco se pode dizer que as informações disponibilizadas tiveram uma ampla transparência, ou seja, estão longe das boas práticas internacionais.

Nas contribuições enviadas pela ARM Consultoria para a CP 17/2023, deixamos claro ser imperioso que a ANP realize, no curto prazo, uma revisão de tarifas integral, conforme as boas práticas internacionais e, mais importante, em obediência ao que está previsto na legislação e na Resolução 15/2014. Considerando que grande parte dos volumes desses contratos legados só finalizam após 2030, tal revisão deveria, ao menos, desatrelar as capacidades contratadas por Comercializadores/Carregadores (não Petrobras) das receitas dos contratos legados.

Deveria ser desnecessário ressaltar que a venda dos ativos de transporte da Petrobras, que originou os contratos legados, foi uma operação comercial entre agentes privados. O pagamento das receitas previstas nesses contratos está garantido, na sua totalidade, pela Petrobras. Tais receitas são fruto desse acordo privado, e não guardam correspondência com a remuneração justa e razoável que deveria ter a transportadora, baseada nos custos do serviço e no adequado retorno do capital investido, conforme recomendado pelas boas práticas internacionais e determinado pela legislação e regulação vigentes.

A garantia de pagar às transportadoras, portanto, foi assumida – em uma negociação bilateral – pela Petrobras. Cabem a ela o ônus e o bônus decorrente dessa negociação. Não se pode admitir, assim, a transferência compulsória desse ônus para os consumidores, de modo a impor tarifas onerosas até o final de 2031, que acabarão por obstruir ou pelo menos dificultar a abertura do mercado de gás no País.

Cabe ressaltar que o item XXXVI, do Art. 3º da Lei 14.134/2021 determina expressamente como deve ser calculada a Receita Máxima Permitida de Transporte. Todavia, a Nova Lei do Gás faz uma ressalva em seu Art. 44 sobre a preservação das receitas dos contratos legados sem, contudo, equiparar as receitas dos mesmos à Receita Máxima Permitida de Transporte.

Os contratos legados são instrumentos jurídicos de caráter privado, que precisam ser respeitados, mas vinculam exclusivamente as suas partes. Todavia, as tarifas resultantes da receita preservada/garantida dos contratos legados estão sendo equivocadamente aplicadas a todo o mercado, quando deveriam estar restritas à Petrobras, a parte que tem a obrigação de garantir as receitas previstas nesses contratos e que originam essas elevadas tarifas.

Na sua proposta, a NTS só apresentou dados referentes ao Gasig, insuficientes para a realização dos cálculos da Receita Máxima Permitida e das respectivas tarifas nos termos estipulados na Lei no 14.134/2021 e na RANP 15/2014. A proposta tarifária da NTS deveria tratar as questões econômico-financeiras de toda a empresa. Ademais, não observa os critérios estabelecidos na RANP 15/2014, ou no item XXXVI do Art. 3º da Lei 14.134/2021, no que se refere à Receita Máxima Permitida de Transporte.

Objetivando uma melhor análise, simulamos um cálculo tarifário, conforme as regras acima citadas, e considerando os dados contábeis publicados pela NTS. Estimativas preliminares apontam para um sobrecusto, no caso da NTS, que poderia estar na ordem de R$ 3 bilhões ao ano, o que permitiria à NTS, ao final de 10 anos, cobrar duas vezes o valor atual de reposição dos seus ativos. A simulação também identificou uma tarifa média de R$ 0,142/m3 contra R$ 0,288/m3 proposta pela NTS para o ano 2024, ou seja, 51% inferior às atualmente praticadas, e que o WACC real da NTS seria de 36% contra 7,25% definido pela ANP. Esse elevado custo do transporte, combinado a (ainda) pouca concorrência do lado da oferta, acaba prejudicando a competitividade do gás e tem efeitos nocivos na indústria brasileira, que vem diminuindo o consumo desse energético nos últimos anos.

Essas diferenças tão acentuadas são originadas pela metodologia de cálculo da Receita Máxima Permitida utilizada pela NTS, que considera a receita dos contratos legados como principal parcela do cálculo tarifário. Essa metodologia não segue os preceitos do marco legal e regulatório aplicáveis, pois transforma uma exceção em regra, com aplicação que se desdobra para todo o mercado e alivia o ônus do garantidor dos contratos legados, a Petrobras.

Tal situação representa uma grande barreira à evolução do mercado livre no País. Pior ainda: estimula os projetos que praticam o bypass do transporte e, consequentemente, da distribuição, impactando a modicidade futura das tarifas para todos os demais consumidores.

Os contratos legados acabam sendo também uma barreira à competição gás x gás e a ANP deveria se debruçar nessa questão o quanto antes, sob pena de atrasos no processo de abertura do mercado livre de gás no País.

Assim, para corrigir esse equívoco, seria conveniente a ANP fixar as tarifas, excepcionalmente, apenas para os anos 2024-2025, procedendo conforme a seguir: i) definir uma nova taxa de remuneração – WACC a partir de 2025; ii) realizar o cálculo da Receita Máxima Permitida (RMP) da NTS, para os anos 2024-2025, considerando o custo do serviço e a Base de Ativos Regulatória – BAR; e  iii) calcular as tarifas com base nessa RMP, que seriam aplicadas aos carregadores que contratassem capacidades resultantes da flexibilização dos contratos legados.

Este procedimento está respaldado no fato de a NTS e a Petrobras, como não poderia deixar de ser, reconhecerem a competência da ANP para fixar novas tarifas de transporte no item 3.2 da cláusula 3ª do Acordo de Redução de Flexibilidades (ARF).

Essa questão assume especial relevância quando temos pela frente o término, em dezembro de 2025, do Contrato Malha SE, um dos contratos legados que deverá disponibilizar, segundo dados da NTS, 42,8 milhões de m³/dia de capacidade contratada (de 16 a 18 milhões de m³/dia efetivamente de disponibilidade) antes alocada, exclusivamente para a Petrobras.

Tal como está, os carregadores, que irão buscar volumes adicionais na oferta de capacidade que será realizada pela NTS, ficam como reféns de tarifas calculadas considerando a receita garantida dos contratos legados. Manter isso representará um grande entrave ao desenvolvimento da liberalização do mercado de gás no País.

A proposta para sanar a questão não é complexa. A medida correta a ser tomada é que, no ano 2025, considerando o término do contrato Malha SE, a ANP realize uma nova Revisão da Tarifa de Transporte que garanta à NTS obter uma receita suficiente para arcar com os seus custos e despesas vinculados à prestação do serviço de transporte e uma adequada remuneração dos seus ativos, com base na RANP 15/2014 e aplicável para o período regulatório 2026-2030, considerando os procedimentos aqui apresentados e uma base regulatória de ativos devidamente auditada.

Com essa medida, a aplicação das tarifas resultantes da receita dos contratos legados ficaria limitada às capacidades reservadas pela Petrobras no ARF.

Essa proposta não só atende à necessidade de preservar a segurança jurídica dos contratos legados à NTS, mas também contribui para garantir transparência ao cálculo tarifário.

Por fim, vale insistir: o transporte é peça-chave para alcançar a plena liberalização do mercado de gás no País. E um ótimo começo para esse objetivo passa pela ANP, com a exclusão dos contratos legados do cálculo tarifário e a realização de uma revisão quinquenal de tarifas, exatamente como prevê a legislação vigente e recomendam as boas práticas internacionais.

Não é – ou pelo menos não deveria ser – tão difícil.

 

Bruno Armbrust é sócio diretor fundador da ARM Consultoria, ex-presidente do grupo Naturgy na Itália de 2004 a 2007 e no Brasil de 2007 a 2019. Também foi vice-presidente da Assogas (associação dos Comercializadores de Gás Natural na Itália), durante o processo de liberalização do mercado de gás. Escreve mensalmente na Brasil Energia.

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