Opinião

A transição energética brasileira - É preciso repensar o setor elétrico

Por Redação

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A crescente participação das novas energias renováveis nas matrizes elétricas ao redor do mundo impõe importantes transformações ao setor elétrico devido às suas especificidades técnicas, sobretudo à intermitência.

Recentes publicações confirmam a tendência de expansão da participação das fontes intermitentes. Estatísticas e projeções apresentadas no relatório New Energy Outlook 2015, da Bloomberg New Energy Finance, preveem que em 25 anos estaremos vivendo em um mundo bastante diferente do atual. Em 2040, a matriz elétrica mundial, hoje composta em dois terços de combustíveis fósseis, passará a contar com 56% de fontes de energia limpa, como ilustram os gráficos abaixo. As renováveis serão responsáveis por pouco menos de 60% dos 9.786 GW de nova capacidade instalada de geração que deverão ser construídos ao longo dos próximos 25 anos e receber dois terços dos US$ 12,2 trilhão em investimentos previstos. É importante destacar que esse rápido avanço já não se dá em virtude de políticas públicas de incentivo mas sim por fatores econômicos. Importantes avanços tecnológicos proporcionaram significativas reduções de custos das novas fontes de geração. É o caso da energia eólica na Europa e no Brasil. Aqui a fonte já é a segunda mais competitiva no País, perdendo apenas para hidrelétricas de grandes reservatórios, cuja expansão encontra importantes obstáculos. Como os ganhos de competitividade serão maiores para a fonte solar, o relatório prevê que, em 2030, a energia solar fotovoltaica via geração distribuída irá ultrapassar a eólica.

A penetração das energias renováveis intermitentes deverá atingir 46% da produção mundial de eletricidade até 2040, dos quais 30%  deverão vir das fontes eólica e solar. Com a maior participação das fontes renováveis intermitentes, os países terão de adicionar capacidade flexível que possa ajudar a atender a demanda de pico assim como entrar em operação quando as fontes intermitentes não estiverem gerando.
Além da mudança de composição da matriz elétrica, os perfis de carga diário também estão mudando. Como o consumo familiar e o comercial estão crescendo mais rapidamente do que o industrial, há mais picos de consumos variáveis e uma base menos estável. Essa mudança de perfil de carga tende a se acentuar com o tempo. Para atender a esse consumo, serão cada vez mais necessários novos serviços para o sistema, tais como gestão da demanda, armazenamento, novas interligações e sistemas de controle que trabalhem junto com a capacidade firme tradicional para ajudar a equilibrar a oferta com a demanda.

Resumindo, estamos caminhando para uma matriz com maior intermitência em sua geração e perfil de carga mais variável. O sistema elétrico tradicional, caracterizado por empreendimentos de grande porte com despacho centralizado e pouca reserva não será capaz de garantir a segurança de abastecimento diante dessas importantes mudanças. São necessárias mudanças organizacionais, institucionais e econômicas que se adequem ao novo perfil tecnológico da geração e aos novos perfis de consumo, de acordo com as especificidades de cada sistema elétrico.
Em diversos países já se vê mudança nos mercados elétricos. Surgem novos sistemas de rede e novos modelos de negócios para absorver as novas tecnologias com diferenciados perfis de custos de capital, de operação e com novas necessidades de financiamento. A difusão de sistemas de micro e minigeração distribuídos e avanços em estocagem possuem dinâmicas muito distintas dos investimentos de grande escala tradicionais dos sistemas de geração centralizado.

Em regiões onde a penetração das energias renováveis intermitente é elevada, deverão surgir serviços adicionais capazes de absorver variações na geração de energia, assegurar a estabilidade do sistema e ajudar a atender picos de demanda. Esta capacidade flexível é composta por uma gama de tecnologias, incluindo controle de demanda, armazenamento para equilibrar a rede, estocagem em baterias e em veículos elétricos, além de maior interconexão entre diferentes regiões. Deverão ser criados mecanismos de mercado que remunerem e incentivem o aporte de flexibilidade ao sistema.
Tamanhas transformações pedem muito estudo. A Alemanha, por exemplo, traçou metas ambiciosas para a expansão das renováveis e agora discute quais devem ser as transformações do setor e do mercado de eletricidade que garantam a segurança de abastecimento e a modicidade tarifária, para assegurar a competitividade de sua indústria, sem abrir mão de um perfil de geração menos poluente. No ano passado, o governo publicou o Green Paper “An Electricity Market for Germany’s Energy Transition”, texto de discussão sobre os rumos que podem ser seguidos e que serão discutidos ao longo de sua legislatura. Nele, o governo reafirma seu compromisso com as renováveis e passa a discutir como irá alcançar maior grau de flexibilidade de sua matriz para garantir o equilíbrio entre a oferta e a demanda, em presença de grande intermitência na geração. O governo afirma ter confiança de que um novo mercado vai se desenvolver se o mercado de eletricidade enviar os sinais corretos. Os preços devem ser capazes de garantir capacidade instalada que seja suficiente para atender a demanda, e fazer com que esta capacidade seja usada no momento e quantidade certos, através de seu despacho. O Green Paper preconiza que o uso da capacidade instalada atual deve ser modificado para garantir mais segurança e eficiência ao sistema.
Decisões que se tomam no setor energético hoje irão afetar o setor e a economia  durante muitos anos. No Brasil, estamos vivendo essa transição energética mas pouco se discute sobre o tema. A energia eólica tem avançado rapidamente.  Sistemas fotovoltaicos de micro e minigeração já se mostram competitivos em 98,5% do mercado de distribuição nacional e sua difusão, como esperado, tem se acelerado. Ambas as fontes se concentram na região Nordeste e já sofrem de gargalos de interligação ao sistema. Entretanto, nosso setor elétrico não mudou. Sofreu pequenas alterações para tentar equacionar problemas de curto prazo (criando novos desequilíbrios), mas não mudou suas formas de remuneração/tarifação nem de despacho. É preocupante a falta de resposta à necessidade de flexibilidade que o sistema demanda. Não houve flexibilização da oferta nem tampouco da demanda. O mercado de eletricidade, assim como as tarifas de eletricidade, sobretudo para os consumidores cativos, continuam sem transmitir sinais de preços que reflitam as necessidades do sistema. A energia hidrelétrica continua sendo despachada na base e, agora que os reservatórios estão baixos, as usinas termelétricas, antigas e concebidas para entrar na ponta, também estão sendo utilizadas com essa finalidade.
O despacho de eletricidade dos nossos reservatórios na base, anteriormente utilizado para garantir a modicidade tarifária, se mostra agora um equívoco extremamente oneroso. Além disso, traz consigo forte impacto negativo sobre o grau de desenvolvimento econômico e de competitividade do País. É preciso pensar na composição da nova base e também na gestão da ponta, reformando no mercado de eletricidade. Somos extremamente privilegiados por nossa dotações de recursos naturais, mas sofremos de falta de gestão e de inovações econômicas, institucionais e organizacionais que se adequem ao novo perfil do setor elétrico.


Referências
Bloomberg New Energy Finance, “New Energy Outlook 2015”, disponível em http://about.bnef.com/content/uploads/sites/4/2015/06/BNEF-NEO2015_Executive-summary.pdf

Federal Ministry for Economic Affairs and Energy (BMWi), “An Electricity Market for Germany’s Energy Transition”, Discussion Paper of the Federal Ministry for Economic Affairs and Energy, Outubro 2014, http://www.bmwi.de/BMWi/Redaktion/PDF/G/gruenbuch-gesamt-englisch,property=pdf,bereich=bmwi2012,sprache=de,rwb=true.pdf

Clarice C. de M. Ferraz é Professora e Pesquisadora do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde realiza seu Post-Doc pela Capes.  É Doutora em Economia pela Universidade de Genebra, Mestre em Energia pela École Polytechnique de Lausanne e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Genebra

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