Opinião

Exemplo europeu para o mercado de gás no Brasil

Iniciativas isoladas e assimétricas como a Agrese e outras passadas não contribuem para a necessária harmonização regulatória. Uma boa referência para o país pode ser um Conselho de Reguladores nos moldes do CEER europeu

Por Bruno Armbrust

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A abertura do mercado de gás no Brasil, que começa a deslanchar, vai exigir um esforço planejado, gradual e assertivo dos órgãos reguladores. E o exemplo de países da Europa pode trazer bons exemplos para que esse processo aqui no país ocorra de forma correta, sem sobressaltos. 

Antes de tudo, vale recuperar um breve histórico: a Constituição Federal de 1988 conferiu aos estados o direito de explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de distribuição de gás canalizado. A inclusão desse parágrafo na constituição foi um divisor de águas no setor. A partir de então, os estados foram criando seus próprios marcos regulatórios e suas agências reguladoras. Na maioria, prevaleceram as empresas sob controle de governos estaduais e, em alguns casos, como Rio de Janeiro e São Paulo, houve processos de concessão à iniciativa privada.

Em 2021, com a aprovação no Congresso Nacional e sanção da Lei 14.134/2021 (Lei do Gás), fez-se importante uma permanente avaliação do grau de abertura do mercado e a consequente implementação de novas medidas que eliminem gradativamente, e sem causar desequilíbrios, as barreiras mais importantes, tendo sempre como norte os objetivos descritos na Resolução CNPE Nº 3 de 07/04/2022.

Mudanças regulatórias começam a ocorrer e eventualmente outras se fazem necessárias em face da harmonização de regulações – uma vez que pertence à União a regulação do upstream e midstream do setor, cabendo aos estados o downstream.

A convivência das regulações nos estados com a federal representa um desafio à parte e vai exigir um grande esforço de coordenação entre os entes competentes, em especial, no que se refere à regulação da atividade de comercialização de gás que até o momento se encontra mal resolvida. Essa situação foi também enfrentada em outros países e seria importante olhar as experiências bem-sucedidas.

No entanto, o que temos visto até o momento, em muitos casos, são decisões carentes de estudos e análises mais aprofundadas, desalinhadas com as boas práticas regulatórias em mercados que passaram por processo semelhante.

Essas assimetrias na regulação do mercado livre entre os diferentes estados são visíveis, mas seu tratamento não é trivial. Vemos agências copiando decisões equivocadas de outras, sem análise prévia e critério técnico, impondo barreiras para um consumidor ser elegível e tornando complexa a vida de um consumidor que deseja contratar gás no mercado livre.

Confunde-se, assim, “harmonização” com “uniformização”, como se uma medida funcionasse para toda e qualquer situação, para todo e qualquer mercado. Boas práticas existem e devem ser partilhadas, mas nunca de forma fria e desconectada das questões reais do mercado.

No caso específico das concessões de distribuição de gás canalizado, temos visto algumas iniciativas em alguns estados que demonstram que ainda estamos distantes da tão falada “harmonização regulatória”.

Exemplo recente vem do Estado do Sergipe, onde a Agência Reguladora de Serviços Públicos, a Agrese, abriu uma Audiência Pública – AP 01/2024 –, que tem como objetivo receber contribuições sobre a revisão de alguns itens do contrato de concessão de gás canalizado, firmado entre o Governo do Estado e a concessionária de gás canalizado Sergas, contrato em vigência desde 1993, tendo sido transcorridos 30 anos de um total de 50 (até 2043).

Importante ressaltar que em todas as leis estaduais de criação das agências reguladoras, como não poderia deixar de ser, constam dentre as competências estabelecidas a de “zelar pelo fiel cumprimento da legislação e dos contratos de concessão”.

Além disso, consta nos contratos de concessão a obrigatoriedade do Poder Concedente em zelar pelo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, garantindo a realização de revisões tarifárias periodicamente e respeitando a metodologia de cálculo pactuada com o concessionário na assinatura do contrato.

As questões que serão tratadas na referida audiência pública têm como pano de fundo um relatório da FGV Energia sobre o impacto econômico dos investimentos em óleo & gás no Estado de Sergipe. Tal relatório, sem querer desmerecer a sua importância, foi realizado com base nas respostas de uma série de perguntas direcionadas a alguns agentes do setor e tiveram um caráter geral.

O relatório carece de um método claro, e nem está direcionado para o objeto da concessão. Reflete, portanto, a compilação de algumas opiniões pessoais sobre questões setoriais, e não algo específico sobre a distribuição de gás canalizado que é de competência exclusiva do estado quanto a sua regulação. Assim, ainda que tenha sido emitido por uma instituição de respeito, o documento representa tão-somente a opinião dos agentes entrevistados, que não pode ser confundida com qualquer iniciativa de “harmonização” ampla e equilibrada. 

Vemos nos últimos tempos algumas unidades da federação preocupadas com sua posição no ranking do Relivre, ferramenta que já tive a oportunidade de criticar quanto à sua eficácia, e que traz mais perturbações ao processo de abertura do mercado de gás do que uma contribuição efetiva. Infelizmente, uma ferramenta que poderia ser promotora de boas práticas regulatórias acabou se tornando mero instrumento de persuasão.

Mudanças que tragam a modernização na regulação são bem-vindas e limitações legais e regulatórias não devem condicionar a lógica do mercado, o interesse público, mas tudo precisa ser feito dentro do marco legal e regulatório vigente, e em respeito a contratos firmados, de forma a garantir a segurança jurídica e a atração dos investimentos.

Iniciativas isoladas e assimétricas como essa da Agrese, e outras passadas, não contribuem para a necessária harmonização regulatória e têm potencial para impor riscos regulatórios indesejáveis. São iniciativas que miram no desenvolvimento do mercado, mas que acabam por minar a credibilidade do setor, afastando investidores e agentes com visão de longo prazo.

É evidente a falta de coordenação entre as agências e um bom caminho para solucionar essa situação seria que as agências estaduais trabalhassem em cooperação, nos moldes do Conselho Europeu de Reguladores de Energia – CEER, que representa a voz coletiva das autoridades reguladoras nacionais da energia da Europa, tanto a nível europeu como mundial.

Na minha concepção, esse Conselho das agências estaduais, à semelhança com o CEER, deveria ser formado por representantes das agências, por observadores externos e por consultores, com experiência em matéria de regulamentação de gás & energia e trabalhariam em conjunto, com o objetivo de promover um ambiente regulamentar harmonizado e favorável ao investimento. 

Mantendo o estrito respeito à Constituição e à legislação, seria papel desse conselho facilitar a cooperação com os reguladores nacionais, Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), partilhando as melhores práticas e desenvolvendo a capacidade regulamentar, sempre equilibrando regras gerais com realidades particulares, buscando a verdadeira harmonização e sempre prezando pelos mais elevados padrões de transparência.

Esse conselho, assim como o CEER, realizaria análises quanto à regulação nos estados e no país, considerando os diferentes contextos e as melhores práticas regulatórias. Publicaria recomendações relacionadas à regulação do mercado de gás, contribuindo no desenvolvimento de políticas regulatórias e na sua harmonização.

Tudo isso posto, é pertinente acrescentar que a falta de uma maior coordenação nos afastará dos objetivos do processo de liberalização do mercado de gás que é o de disponibilizar ao cliente final um fornecimento seguro a preços competitivos, ampliando a possibilidade real dos consumidores elegerem seu fornecedor, com reais ganhos de eficiência e assegurando a rentabilidade suficiente aos agentes para garantir a expansão das infraestruturas.

A regulação no país precisa começar a ser compreendida com algo essencial para a existência de mercados abertos, competitivos e maduros.

Parece claro que um Conselho nos moldes do CEER europeu contribuiria sobremaneira para a Harmonização Regulatória do setor do Gás no Brasil.

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