Opinião
O contrato de concessão brasileiro: mudar para quem?
Longo foi o caminho nas mais de cinco décadas de implantação e amadurecimento da indústria do petróleo no Brasil, e muito se escreveu sobre as diversas fases percorridas, as conquistas e os horizontes abertos pela trajetória da Petrobras, desde as primeiras descobertas em terra até sua atuação pioneira em águas profundas.
Também já se comentou a importância da internacionalização dessa empresa para seu fortalecimento, a qual permitiu o incremento de sua capacidade de enfrentar com sucesso os desafios inerentes ao ambiente competitivo implantado no cenário nacional, a partir da EC 9/95 e da Lei 9.478/97 (Lei do Petróleo).
No decorrer desses anos de abertura do mercado, o cenário brasileiro sofreu grandes modificações: passamos de um país importador de petróleo à auto-suficiência em volume produzido e tivemos descobertas que, a princípio, confirmam as previsões mais otimistas sobre nosso potencial petrolífero – sem falar do desenvolvimento da indústria nacional de bens e serviços voltados para esse setor.
Trata-se de conquistas do modelo competitivo que não podem ser menosprezadas. Entretanto, com o aumento dos debates na mídia e nos fóruns especializados acerca das propostas de mudança do atual marco regulatório do petróleo, é oportuna a reflexão sobre o modelo brasileiro na perspectiva comparatista.
Essa análise comporta três vertentes principais, que se completam, mas não se confundem: a) a remuneração diretamente auferida pelo Estado hospedeiro em virtude do aproveitamento dos recursos petrolíferos (government take) e a forma de apropriação ou distribuição desses benefícios; b) o desenho institucional que permite, de um lado, a regulação desse segmento da economia, e de outro, o gerenciamento adequado dos recursos e a fiscalização da atividade desempenhada pelos entes privados; c) o instrumento contratual adotado para o exercício da atividade econômica, precedido do processo de escolha dos agentes e outorga de direitos.
Desse conjunto, o último esteve no vértice do relacionamento entre Estados hospedeiros e investidores, no que se convencionou chamar no Direito Internacional de Contratos com o Estado, ou Contratos de Desenvolvimento Econômico. Foram gerados um denso corpo de doutrina e decisões arbitrais nessa matéria, que se irradia por diversos campos do Direito.
Em verdade, o sucesso de um sistema deve ser a condução harmoniosa das três vertentes, sob o prisma da eficiência e da governança. Numa visão abrangente, o government take é um mecanismo pelo qual as receitas oriundas do aproveitamento dos recursos petrolíferos são transferidas para a coletividade, desde que as instituições sociopolíticas do Estado assim permitam. O atual government take brasileiro está refletido no Decreto 2.705/98.
Para aquisição dos direitos de E&P é necessário o pagamento de uma quantia em dinheiro diretamente ao Estado – o bônus de assinatura –, um dos elementos considerados na avaliação das ofertas dos licitantes, ao lado do programa mínimo de trabalho a ser executado e do compromisso de aquisição local de bens e serviços. Apenas o valor mínimo desse bônus é estipulado no edital de licitações. Também é obrigatório o pagamento de uma taxa por ocupação ou retenção de área, cuja finalidade principal é desencorajar concessionárias de reterem áreas onde não estejam efetivamente atuando.
Apesar de o bônus de assinatura também poder ter uma “função arrecadatória”, os principais componentes do government take são os royalties e as participações especiais. Antes da abertura do mercado, a alíquota de royalties sobre a produção de petróleo era de apenas 5%, e não havia nenhuma outra espécie de government take. A majoração dos royalties e a criação de novas participações contribuíram para o aumento das receitas diretamente auferidas pelo Estado brasileiro. Em pouco mais de uma década da abertura, foram arrecadados cerca de R$ 90 bilhões em participações governamentais. Isso sem contar os recursos auferidos de forma indireta.
Passemos à análise do modelo de contrato de concessão atualmente adotado no Brasil. Os modelos mais comuns são a concessão tradicional, que precisa ser destacada da concessão do pós-guerra; as joint ventures e os contratos de associação; os contratos de partilha de produção; os contratos de serviço; os contratos de prestação de serviços com cláusula de risco e as modernas licenças, bem como os leases norte-americanos. Essas diferentes denominações procuram, em geral, indicar contratos com natureza jurídica distinta que foram assumindo traços peculiares dos ordenamentos jurídicos que os abrigaram. Daí porque se fala em modelo iraquiano de contrato de serviço, contrato colombiano de associação, licença do Mar do Norte (britânico ou norueguês), contrato de partilha de produção angolano etc.
No entanto, a análise econômico-tributária desses tipos de contratos permite agrupá-los em apenas dois modelos básicos: as concessões e os contratos de partilha de produção. Da mesma forma, um levantamento dos temas recorrentes deixa entrever que assiste razão ao professor Thomas Waelde, da Universidade de Dundee, que entende que “os vários tipos de contratos podem ser usados para atingir os mesmos resultados econômicos, financeiros, de risco e de controle”, já que as formas híbridas predominam. Uma análise “funcional” ou estrutural tem permitido detectar a tendência de aglutinação de traços básicos das formas clássicas dos contratos petrolíferos, já que os países passaram a intercambiar experiências e importar aspectos considerados mais favoráveis de um e de outro contrato.
Em linhas gerais, houve, na década de 1990, uma maior liberdade na alocação de propriedade, controle e benefícios financeiros. Limitamo-nos a descrever as linhas centrais do contrato de concessão brasileiro e a examinar o modelo norueguês de licença, do qual muito se tem falado e que inspirou, inclusive, nosso atual contrato de concessão. Não obstante, na Noruega há diferenças fundamentais que precisam ser destacadas, tanto na esfera das participações governamentais quanto no desenho institucional.
O contrato brasileiro é celebrado entre a ANP e a empresa ou grupo de empresas que venceu a licitação de um determinado bloco. Cabe realçar que as atividades das duas fases, a de exploração e a de produção, são desenvolvidas por conta e risco do concessionário e devem atender: (1) às disposições do próprio contrato e do respectivo edital de licitações; (2) aos compromissos de programa de trabalho e de aquisição de bens e serviços nacionais assumidos na licitação; e (3) às normas regulamentares estabelecidas nas resoluções da ANP e legislação aplicável. O concessionário apenas adquire a propriedade dos recursos petrolíferos efetivamente produzidos.
Um ponto de destaque é a coexistência de duas entidades governamentais com funções bem distintas: a ANP, como órgão responsável pela regulação, contratação e fiscalização das atividades; e a Petrobras, como estatal por meio da qual o Estado interfere diretamente nesse segmento econômico. De certa forma, essa coexistência assemelha-se ao sistema de freios e contrapesos, buscando-se garantir que as atividades petrolíferas sejam desenvolvidas de acordo com as normas estabelecidas prévia e imparcialmente, tendo por fim último o efetivo atendimento do interesse social, e não interesses corporativos da estatal. Não fica clara a extensão das alterações recentes, em que a EPE e o próprio MME parecem estar assumindo algumas das funções previstas em lei para a ANP. O próprio grupo interministerial, embora possa ter papel legítimo, não pode subtrair as competências previstas em lei.
Merece destaque também o caráter democrático do modelo: a elaboração dos documentos mais relevantes não se dá exclusivamente em gabinetes fechados. Tanto as resoluções expedidas pela ANP quanto o próprio edital de licitação são previamente disponibilizados para consulta pública, havendo também a obrigatoriedade de realizar uma audiência pública para seu debate. Além disso, uma preocupação da agência sempre foi a lisura e a transparência do processo licitatório, o qual vem sendo muito elogiado, tendo sido desenvolvidos mecanismos de apuração de resultados online, que podem ser acompanhados por qualquer pessoa em tempo real através da internet.
A análise do modelo norueguês, por sua vez, revela que ele sofreu ajustes desde sua implementação, na década de 1970, mas sempre manteve sua essência. As atividades de E&P na Noruega tiveram um crescimento acentuado na década de 1960, razão pela qual foram criadas para o setor petrolífero em 1972 uma agência reguladora (Norwegian Petroleum Directorate, NPD) e uma empresa estatal (Statoil, hoje StatoilHydro).
Nas primeiras licenças outorgadas, era obrigatória a associação com a Statoil, que deveria ter 50% de participação na licença. Com o passar dos anos foi possível negociar o percentual de participação. Em 1985, o governo desmembrou sua atuação no mercado de E&P em duas vertentes: uma voltada para as atividades operacionais de E&P, tanto no âmbito interno quanto no internacional, desenvolvidas pela Statoil; e outra para o financiamento das atividades de E&P e participação como não-operador nos projetos, através do State’s Direct Financial Interest (SDFI).
De acordo com Richard Gordon e Thomas Stenvoll, tal desmembramento se deveu à necessidade então vislumbrada pelo governo norueguês de diminuir o poder e a influência da estatal, à época a principal empregadora do país. Em 2001, com a abertura de capital da Statoil – cerca de 30% de seu capital é detido por investidores –, o governo criou a Petoro, uma companhia estatal 100% controlada pelo Estado, para a administração do SDFI.
O sistema de tributação da atividade petrolífera da Noruega é a principal fonte dos recursos auferidos pelo Estado a partir do aproveitamento dos recursos naturais, havendo tanto a incidência de tributação ordinária (28% sobre as receitas líquidas) quanto a de uma tributação especial (50% das receitas líquidas). As empresas podem deduzir da base de cálculo dos tributos todas as despesas conexas à atividade de E&P, inclusive as de exploração, de pesquisa e desenvolvimento, de operação e de abandono, entre outras deduções.
Também há “tributos reguladores”, criados com o objetivo de promover a redução da emissão de gases poluentes, como CO2 e óxidos de nitrogênio. Cabe mencionar, ainda, a obrigatoriedade do pagamento da area fee, semelhante à taxa por ocupação ou retenção de área do modelo brasileiro.
Além disso, quando da concessão de uma área, o Estado norueguês avalia sua rentabilidade e determina qual o percentual do projeto que será detido por ele através do SDFI. Em outras palavras, em projetos muito lucrativos o governo impõe a participação do Estado como um sócio não-operador, ou um sócio investidor comum. Nessa condição, o governo participa de todos os riscos do empreendimento, compartilhando custos exploratórios, investimentos e custos operacionais dos contratos, e recebendo como contrapartida o valor correspondente à sua participação na receita dos campos em produção.
Por fim, integram as receitas auferidas pelo Estado os dividendos pagos pela StatoilHydro, não apenas pelas atividades realizadas internamente, mas também pelas operações em outros países.
Com a constatação de que a produção do Mar do Norte está próxima de seu pico, o governo norueguês criou, na década de 1990, o Fundo do Petróleo (Petroleum Fund), posteriormente renomeado Fundo de Pensão do Governo (Government Pension Fund). Parte das receitas anuais das atividades do setor são revertidas para esse fundo, que tem o duplo propósito de amenizar os efeitos das variações de curto prazo das receitas estatais oriundas do setor de E&P e prover um mecanismo de transferência de recursos para as gerações futuras. Atualmente o fundo conta com mais de US$ 360 bilhões, administrados pelo Norges Bank, que são investidos em títulos e ativos no mercado financeiro internacional.
A rediscussão do modelo institucional brasileiro não pode ser feita sem considerar tudo o que foi construído nos últimos dez anos e as limitações orçamentárias de nosso país. A indústria tem um ciclo muito longo; em alguns casos pode levar uma década até um poço começar a produzir; e considerando a previsão dos especialistas, o desafio tecnológico dessas novas descobertas demandará investimentos numa escala nunca antes vista no Estado brasileiro. Nesse momento, temos de analisar como uma paralisação na continuidade das rodadas pode atrasar o desenvolvimento da indústria como um todo e ser desastrosa para a manutenção do que já se atingiu após tantos anos.
No cenário internacional de investimentos muito se tem comentado sobre a adaptação do modelo brasileiro. As mudanças que eventualmente venham a ocorrer deverão ser precedidas de análise mais profunda. Preliminarmente, há que considerar as expectativas dos investidores quanto à estabilidade do país, tendo em vista os princípios da segurança jurídica, respeito aos direitos adquiridos e não retroatividade, boa-fé objetiva e confiança legítima. Como bem expressou a ministra Ellen Gracie, em seu voto que cassou a liminar que suspendia a 8ª rodada, “não se pode olvidar, ademais, que o capital sempre migra para os países onde estão as melhores oportunidades de investimentos e que lhe oferecem maior segurança, sobretudo jurídica”.
Marilda Rosado de Sá Ribeiro é Doutora em Direito Internacional pela USP, professora de Direito Internacional da Uerj e de Direito do Petróleo e Gás do IBP e da Faculdade de Direito Agostinho Neto (FDUAN) de Luanda, Angola, e sócia do Escritório Doria, Jacobina, Rosado e Gondinho Advogados Associados
Contribuíram para este artigo Jorge Pedroso, mestre em Direito Internacional pela UERJ – pesquisador do CEDPetro/UERJ e Maria Angélica Medeiros, estagiária do escritório Doria, Jacobina, Rosado e Gondinho Advogados Associados – pesquisadora do CEDPetro/UERJ.