Opinião
Transporte de gás natural: quem paga a conta?
A infra-estrutura para transporte de gás natural vem sendo tema de diversos seminários e reuniões técnicas, provocando debates intensos sobre o que fazer, como fazer, quando fazer, a quem cabe fazer. Ou seja, há um consenso quanto à necessidade de dotar o país de uma rede de gasodutos e/ou fontes de suprimento alternativas tipo gás natural liquefeito/comprimido (GNL/GNC). No entanto, a responsabilidade de quem paga a conta, ou melhor, de quem deve dar garantia - se toda a sociedade brasileira ou somente os consumidores do gás - aos investidores, estatais ou privados, tanto com relação ao retorno de seu investimento quanto à tomada de crédito com as instituições financeiras, não está definida.
Outra questão se faz presente: o Estado deve ser indutor ou executor do desenvolvimento? A conjuntura econômica nas duas últimas décadas levou o país a priorizar instrumentos de controle, ou seja, indicadores, entre outros, para superávit primário e meta para a inflação, em vez de modelos clássicos de planejamento e desenvolvimento estruturantes. Uma comparação possível seria a administração do futuro de uma empresa unicamente por seu departamento financeiro, esquecendo-se de uma consistente avaliação estratégica do tipo onde estamos e onde desejamos chegar. Assim, na medida em que o modelo de planejamento está subordinado aos índices e indicadores econômicos, estes passam a ser os únicos instrumentos de gestão e, portanto, só permitem a simples leitura e constatação da realidade em que o país se encontra.
Para se atender a uma futura matriz energética com significativo crescimento da participação do gás natural, é necessária uma clara discussão, não apenas sobre os investimentos que possam garantir a infra-estrutura nacional de transporte, mas também definir claramente e de forma objetiva o alvo e de que forma será a trajetória para atingi-lo. A inexistência de um planejamento efetivo leva à surpresa e à insatisfação por não terem sido alcançados os objetivos ou pela situação não ser a desejada.
Dessa forma, é necessário discutir o tema de energia oriunda do gás natural, objetivando dotar o país da infra-estrutura energética capaz de garantir que os investidores, no Brasil, confiem que terão resultados positivos, com garantia de retorno do capital empregado. Esta é a única forma de se criar um ciclo virtuoso para investimentos crescentes da pluralidade dos interesses nacionais, conduzida numa mesma estratégia de desenvolvimento. É bom lembrar que somente a partir do final da década de 90 é que o sistema de planejamento do setor elétrico passou a adotar modelos calcados em indicadores de natureza probabilística, deixando o modelo clássico determinístico, através do qual suas etapas e obras eram explicitadas, e ainda estamos nos adaptando a esta nova situação.
De seu lado, a jovem indústria do gás natural no Brasil tem buscado se tornar um segmento competitivo, sem que para isso exista um mercado amadurecido ou uma malha de transporte que estimule o risco das empresas. O Brasil, com sua dimensão continental, sua má distribuição demográfica e suas reservas de gás em áreas complexas e/ou remotas (águas profundas nas bacias de Campos e Santos e na Amazônia-Urucu), tem grandes dificuldades em estruturar economicamente projetos de transporte de gás. A fase inicial da indústria, que marca o abastecimento das cidades, com fábricas locais de gás manufaturado para iluminação e, posteriormente, para uso residencial e setor de serviços, passou e pertence à história. As características principais e naturais dessa fase foram a produção local e as redes isoladas.
Com o início da produção nacional de gás natural, foi possível a substituição do gás então manufaturado, bem como a construção de rede de transporte em alta pressão, alimentando os sistemas isolados do Nordeste e do Sudeste. O crescimento da demanda do produto e a existência de considerável mercado potencial levaram o país a considerar outras opções de oferta além das provenientes das reservas domésticas. Países vizinhos, como a Bolívia e a Argentina, Peru e Venezuela, são alternativas que sempre foram e deverão continuar sendo avaliadas com o objetivo de atendimento ao mercado brasileiro. Atualmente, o Brasil importa o gás da Bolívia e da Argentina, o desta última em pequena escala.
Pelas razões conhecidas, a diversificação de fontes de importação é a tarefa mais objetiva e segura que devemos empreender, principalmente porque, no momento, a importação da Bolívia representa parte significativa do atendimento ao consumo. Assim, a complementação da malha internacional do Sul do Brasil suprida através da Argentina e a importação de GNL mostram-se imprescindíveis ao desenvolvimento da indústria brasileira do gás natural. Com relação ao gás natural liquefeito, a estrutura do mercado consumidor brasileiro mostra a conveniência da implantação de pelo menos dois sistemas de regaseificação no litoral: um na região Nordeste e outro na região Sudeste, em volumes adequadamente dimensionados, de modo a permitir que a aquisição do produto possa ter origem em qualquer mercado ofertante.
Só após a implantação de uma malha real integrada entre diversas fontes de oferta é que será possível ter um mercado competitivo, sempre regulado pelo poder público, para garantia do consumidor, do investidor e do Estado. Como já foi ressaltado, no Brasil convivemos com dois sistemas de abastecimento isolados de gás em regiões geográficas distintas: o do Sudeste, com mercado mais desenvolvido, embora mais jovem; e o do Nordeste, com demanda bem mais modesta. A interligação desses dois sistemas configura-se de fundamental importância, não só para garantir fluxo em qualquer sentido, mas também para que o gasoduto resultante dessa interligação seja usado também para regulação do estoque e fluxo do produto, o que sem dúvida é necessário pelas variações naturais de mercado.
A aceleração da produção nacional de gás dos campos já descobertos, a descoberta de novas reservas através de esforço exploratório, a diversificação da importação, inclusive do GNL, e a interligação dos sistemas Sudeste/Nordeste tornarão possível criar um mercado competitivo. O transporte de gás no Brasil entre os campos produtores e o mercado consumidor é monopólio natural ou de fato. Portanto, constitui obrigação do Estado zelar por ele, uma vez que a composição da matriz energética deve refletir o planejamento nacional da oferta de energia. Desta forma, a competição no setor gás natural deve ser estimulada a ficar focada na produção de gás e na qualidade da molécula do gás.
A logística do transporte é atividade fundamental e significativa, mas essencialmente geradora de custo, e assim sempre será. Estabelecidas todas essas necessidades, vale frisar que nada disso terá bom andamento se as perguntas do início não forem respondidas - e rapidamente. Afinal, quem paga a conta? Todos (a sociedade, por meio de impostos) ou alguns (os consumidores, por tarifas de transporte decorrentes do custo do investimento e respectiva remuneração do capital)? E qual a função do Estado? Indutor ou executor do desenvolvimento? Tais decisões são fundamentais para o futuro do setor.
Antonio Luiz Silva de Menezes é consultor, ex-vice-presidente Executivo da Gaspetro e ex-diretor Executivo de Gás e Energia da Petrobras