Opinião

Caminhos para o desenvolvimento do setor de gás natural no Brasil

Por Redação

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O momento atual que enfrenta o  setor elétrico no Brasil é caracterizado por uma combinação de transformações estruturais e mudanças ou agravantes conjunturais, evidenciados por preços e tarifas elevados com aumentos expressivos que afetam consumidores de todas as classes – residenciais e industriais. De tempos em tempos emergem  também  preocupações com segurança do suprimento, temporariamente afastadas pela desaceleração do nível de atividade econômica.

Diante desse quadro, urge avaliar como produzir mudanças virtuosas coerentes com as transformações que experimenta o setor, tendo em vista que a expansão térmica tende a ser irreversível e a demanda por gás pode crescer diante das altas tarifas de eletricidade.

A dificuldade de promover um aumento sustentável da penetração do gás natural é potencializada tanto pela insuficiência na oferta do recurso, como pela escassez de uma rede de escoamento, transporte e distribuição (ou pelo menos de um acesso a ela). Nesse contexto, é fundamental avaliar se existem novos elementos capazes de promover um aumento da participação do gás natural na matriz elétrica no Brasil atendendo a objetivos de política energética como segurança no suprimento, preços e tarifas adequados, coerentes com a competitividade do país.

Uma análise da evolução do marco regulatório do gás natural no país deve começar pela Lei do Petróleo, a Lei 9.478/97, que estabelece, entre os objetivos de política energética, a promoção de uma penetração do recurso na matriz energética.

No segmento de E&P, a abertura do setor viabilizou a entrada de novos players, de sorte que atualmente mais de 90 concessionárias de petróleo e gás atuam no país. Analisando-se o número de empresas, constata-se que há uma distribuição equilibrada entre companhias nacionais e estrangeiras. Entretanto, quando se avalia a participação dessas empresas no total da oferta doméstica de GN, a Petrobras responde por mais de 80%. Resta evidente, portanto, a concentração e a dominância da empresa no segmento. Neste ponto é importante destacar que essa concentração também ocorre nas etapas seguintes da cadeia do gás natural, desde o escoamento da produção até as unidades de processamento até a oferta final do insumo, seja diretamente a partes relacionadas (unidades de produção de fertilizantes e instalações de refino de petróleo)1  ou através das distribuidoras2.

Além disso, na oferta, o histórico do país voltado à exploração offshore resulta em uma escassez de conhecimento geológico para áreas onshore. Esse aspecto, combinado a um regime excessivamente burocrático para outorga dos direitos exploratórios em terra, representa uma barreira à entrada significativa para empresas com perfil para atuação onshore (normalmente empresas menores, não as tradicionais IOCs3).

O acesso aos gasodutos de escoamento é um gargalo importante. Atualmente, a não obrigatoriedade do acesso aos gasodutos de escoamento, associada à falta de presença significativa dos demais produtores no mercado, inibe o desenvolvimento competitivo desse recurso, limitando as opções de monetização do gás e colocando a venda da produção na plataforma para o agente dominante como a melhor opção.

No transporte, em princípio, a combinação de um regime autorizativo de outorga com a existência de uma empresa dominante logrou promover um aumento moderado da rede de gasodutos, coerente com os estágios iniciais de penetração do recurso na matriz elétrica e mesmo energética. Há, contudo, também neste segmento da cadeia, concentração, sendo aproximadamente 97% da malha de transporte do país controlada pela empresa4. Também no segmento de distribuição a Petrobras ocupa posição de destaque, com participação relevante (maior ou igual a 19,5%) no capital votante de 19 distribuidoras locais.

Acreditava-se que a mudança no regime de outorga dos gasodutos de transporte para concessão, promovida pela Lei do Gás (a Lei 11.909/09), seria capaz de fomentar a expansão da malha de transporte doméstica. Entretanto, passados mais de cinco anos, não se verificou aumento dessa rede.

Ainda que se acreditasse que o novo regime de outorga seria capaz de conferir maior segurança ao investidor, a mudança também não se mostrou capaz de gerar uma oferta competitiva de gás natural ao mercado.

A relevância dessa discussão é potencializada por transformações no setor elétrico no Brasil em decorrência de uma redução da capacidade de armazenamento do sistema, sobretudo em decorrência de restrições ambientais e de certo modo políticas. A expansão restrita a usinas hidrelétricas a fio d’água limita o crescimento da capacidade de armazenamento do sistema elétrico, contrariamente ao desenvolvimento histórico do setor.
Uma forma importante de equilibrar essa perda da capacidade de armazenamento do setor pode ser compensada por um aumento da geração termelétrica a gás natural. Entretanto, a atual estrutura da indústria do gás natural inibe o desenvolvimento de tal recurso. Do ponto de vista econômico, quando há alinhamento dos objetivos, o agente que controla essa essential facility é incentivado a maximizar o volume movimentado do recurso. Desse modo, os agentes no segmento de E&P buscam mais mercado para seus recursos, e em consequência demandam/usam mais transporte. Como resultado, o transportador aumenta seus ganhos, com redução nos custos unitários.

Duas alternativas se colocam para alterar o quadro atual, caracterizado pela dominância de agente no mercado de recurso energético que controla também o acesso às redes de transporte e distribuição: desverticalização efetiva (ou unbundling); e a criação de um operador independente da malha de transporte dutoviária.

No tocante à desverticalização, a regulamentação atual avançou ao permitir que, no momento de contratação da expansão do gasoduto, o agente tenha de escolher uma opção mais conveniente – carregador ou transportador; contudo, por permitir essa escolha a cada novo gasoduto, não representa uma separação efetiva de atividades.  Esse direito de escolha não é suficiente para impedir a adoção de práticas anticompetitivas.
Uma segunda opção consiste em estabelecer neutralidade no acesso à rede por meio da criação da figura de um operador da malha de transporte dutoviária, com capacidade de exercer monitoramento efetivo da contratação e do uso em tempo real do gasoduto, de modo a otimizar os fluxos.
Em agosto de 2015 foi criado Grupo de Trabalho Interministerial entre os ministérios da Fazenda e de Minas e Energia. O objetivo explícito seria analisar alternativas e impactos para um plano de desinvestimento da Petrobras, motivado principalmente pela necessidade de caixa da companhia.
A alienação de ativos da Petrobras cria uma oportunidade ímpar de avançar no sentido de alinhar os incentivos no setor. Diante das transformações experimentadas pelo setor de energia elétrica no Brasil, que experimenta transição rumo a um aumento persistente ou irreversível da geração termelétrica a gás natural, urge promover aperfeiçoamentos no marco legal e regulatório do setor, que, combinados com o plano de desinvestimento da Petrobras, incentivem o desenvolvimento de um mercado para o gás natural capaz de alocar o recurso entre seus múltiplos usos, com ganhos de competitividade e bem-estar para o país.

1 Art. 56.  Fica assegurada a manutenção dos atuais regimes de consumo de gás natural em unidades de produção de fertilizantes e instalações de refinação de petróleo nacional ou importado existentes na data de publicação desta Lei.
2 Nas quais, como será abordado mais adiante, a Petrobras detém participação expressiva (de pelo menos 19,5%) em pelo menos 19 delas através da Gaspetro.
3 International Oil Companies.
4 Esse dado leva em consideração os gasodutos atualmente classificados como gasodutos de transporte de gás natural (não abrangendo os que tenham sido reclassificados, portanto) e o controle societário da Petrobras sobres as empresas detentoras das autorizações, TAG e TBG.


Diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas

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