Opinião

Consumidor fantasiado de autoprodutor

A onda de consumidores que estão se convertendo em “autoprodutores” para evitar o pagamento de encargos é mais um exemplo de como a inteligência do Setor Elétrico tem trabalhado para uma injusta alocação de custos entre consumidores

Por Jerson Kelman

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Historicamente, alguns grandes consumidores decidiram construir as suas próprias usinas de geração para atender total ou parcialmente a própria carga, tornando-se autoprodutores, com o propósito de evitar a volatilidade dos preços de energia e os eventuais racionamentos causados por crises hídricas. Com o passar dos anos, encargos setoriais foram criados para garantir a segurança energética, que impactam o custo da energia para todos os consumidores. Os autoprodutores também pagam esses encargos. Porém apenas sobre a parcela de energia comprada no mercado e não na produzida para consumo próprio.

Justifica-se essa não incidência de cobrança porque, como apontado pela Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia Elétrica – ABIAPE (Nota 13/2023), “o autoprodutor, na sua capacidade de geração própria, investiu na disponibilidade de serviços energéticos, expandindo assim a capacidade de geração do país e, por isso, não paga por um serviço que ele mesmo executa como gerador”. Na parcela de geração própria, os autoprodutores são isentos de encargos para suporte de políticas públicas, que incidem sobre os consumidores.

Quando confrontados com o custo de investimento para construir a usina de geração e o de transação para administrar empreendimento estranho à atividade principal da empresa, nem todos os grandes consumidores optaram pela autoprodução.

Nos últimos anos, o custo de investimento diminuiu muito, graças ao barateamento das placas fotovoltaicas e dos geradores eólicos. O custo de transação também, graças a arranjo societário abaixo descrito, baseado nas chamadas ações superpreferenciais. Nesse novo contexto, há uma onda de consumidores – não apenas os grandes, mas também os de menor porte -que estão se convertendo em “autoprodutores” para evitar o pagamento de encargos.

Funciona assim: o consumidor torna-se sócio direta ou indiretamente, com direito a voto, de uma SPE com participação societária em usina eólica ou solar. A parcela da geração proporcional à fração das ações ordinárias sob seu controle é equiparada à autoprodução. Na SPE há um sócio que faz o investimento em troca de ações sem direito a voto - as tais superpreferenciais - que superam significativamente as ações com direito a voto. Esse modelo permite uma diluição desproporcional da participação das ações com direito a voto no capital social, o que possibilita ao consumidor investir uma porcentagem ínfima comparada à sua participação na geração de energia.

É natural que administradores de empresas sejam atraídos para um negócio que lhes dá direito de anunciar aos acionistas e ao mercado em geral que suas respectivas empresas consomem energia autoproduzida, mais barata e de fonte limpa. Um gol no front ESG!

Todavia, o consumo equiparado à autoprodução com base nesse modelo de SPE significa, na prática, dar ao consumidor um desconto no preço da energia baseado na isenção de encargos. Isso sem que ele invista na construção da usina, nem que corra os correspondentes riscos. O desconto corresponde a uma parcela do custo sistêmico, que será inescapavelmente arcado pelos demais consumidores.

Ademais, esse tipo de arranjo societário induz à sobre oferta de energia e ao aumento do volume de subsídios que beneficiam os geradores e consumidores das fontes eólica e solar.  Aliás, subsídios que faziam sentido no passado, quando usinas eólicas e solares eram caras. Porém, que não fazem mais porque, além de baratas, essas fontes são altamente desejáveis. Afinal, não contribuem para o efeito estufa.

O arranjo societário aqui sumariamente descrito permite a consumidores de menor porte “vestir a fantasia” de autoprodutor. Com bônus e quase sem ônus. É mais um exemplo - e não o pior – de como a inteligência do Setor Elétrico tem trabalhado para uma injusta alocação de custos entre consumidores. Melhor seria se trabalhasse para aumentar a produtividade do Setor, reduzindo custos para todos.

 

 

Jerson Kelman foi diretor-geral da ANEEL, presidente do Grupo Light e interventor na Enersul. Escreve na Brasil Energia a cada três meses.

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