Opinião

Lastro e Energia

Assegurada a confiabilidade sistêmica de um conjunto, não seria mais necessário limitar contratos comerciais de energia à soma dos lastros das usinas vendedoras

Por Jerson Kelman

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A confiabilidade de suprimento de um sistema elétrico é uma propriedade sistêmica que beneficia todos os consumidores. Como as usinas não quebram ao mesmo tempo e não há secas simultâneas em todas as bacias, a demanda que um conjunto de usinas é capaz de atender de forma confiável é superior àquela dada pela soma das capacidades individuais.

No Brasil, essa sinergia é capturada pela garantia física sistêmica (GFS), que expressa a capacidade coletiva de atender à carga de energia mesmo na hipótese de uma condição hidrológica desfavorável. A estimativa da contribuição de cada usina ao esforço coletivo é feita um tanto arbitrariamente, desagregando a GFS numa coleção de garantias físicas individuais, também chamados de “lastros energéticos”, um para cada usina, de tal forma que a soma dos lastros individuais iguale à GFS.

Para evitar a comercialização de energia em volume superior ao que o sistema seria capaz de produzir de forma confiável, cada usina só pode contratar a venda de uma quantidade de energia menor ou igual ao respectivo lastro energético.

A penetração das novas renováveis – eólica e solar –introduziu desafios à operação. Por não serem armazenáveis, funcionam como um carro capaz de desenvolver a velocidade média de cruzeiro requerida, porém sem qualquer controle sobre a velocidade instantânea, o oposto da renovável chefe do Brasil, a hidroelétrica. Com o crescimento da participação dessas usinas no sistema gerador, zelar para que a GFS seja superior ao consumo agregado de energia já não é suficiente para assegurar um sistema gerador confiável, capaz de atender a todos os consumidores todas as horas do dia, todos os dias do ano.

A governança do Setor (MME/EPE/Aneel) percebeu o problema e tem aperfeiçoado as regras de leilões no ACR visando a confiabilidade em todas as dimensões, não apenas na energética. Mas é preciso considerar tão explicitamente quanto possível esses outros atributos e dividir o custo sistêmico entre todos os consumidores, não apenas entre os cativos.

É natural que se cogite estender a maneira de pensar atual, atribuindo a cada usina não apenas o seu lastro energético, mas também outros lastros, principalmente o de potência. A PSR apresenta conceitos fundamentais sobre o assunto no Energy Report 153. Porém, numa abordagem “fora da caixa”, a PSR explica, no mesmo relatório, que a seleção de um conjunto de usinas dotado dos atributos necessários à garantia da confiabilidade dispensaria o cálculo dos diferentes tipos de lastro para cada usina.

Escolher o conjunto de usinas para compor o “sistema gerador garantidor da confiabilidade do sistema” é um problema análogo ao do técnico de futebol que tem que selecionar jogadores para representar o país na Copa. Uma seleção formada pelos melhores talentos individuais pode ser inferior a outra que coletivamente funcione melhor. A responsabilidade do técnico (no caso, a governança do Setor) é selecionar uma equipe confiável em que cada jogador se disponha a fazer o que for melhor para o resultado do time, em troca de uma remuneração previamente estabelecida.

Assegurada a confiabilidade sistêmica, não haveria mais a necessidade de limitar os contratos comerciais de energia à soma dos lastros das usinas vendedoras. Dessa forma, lastro e energia estariam separados e os contratos de longo prazo de energia passariam a ser instrumentos puramente financeiros, vocacionados para evitar a volatilidade de preços no mercado de curto prazo.

A escolha de usinas para a seleção poderia ser feita por meio de um leilão A-6 em que concorreriam tanto as usinas existentes quanto as candidatas à construção. Cada participante ou consórcio de participantes informaria: (i) a receita fixa (R$/ano) pretendida para fazer parte da seleção e (ii) as suas características técnicas (perfil horário/sazonal de potência despachável, disponibilidade energética em MWh/ano, CVU, restrições operativas e custos de partida).

De posse dessas informações, caberia à governança do Setor utilizar metodologia transparente e reproduzível para selecionar o conjunto de usinas de mínimo custo, capaz de atender às condições de confiabilidade. Tanto as usinas selecionadas quanto as não selecionadas poderiam produzir e vender energia. Mas só as selecionadas receberiam a correspondente receita fixa anual em troca do compromisso de obedecer a despachos do ONS, respeitadas as suas características técnicas autodeclaradas.

Essa alternativa, aqui apenas esboçada, carece de detalhamento, inclusive para avaliar possível conjugação com despacho por oferta de preços. Mas não deve ser descartada sem uma maior reflexão.

[1] O autor agradece as discussões com Luiz Barroso, José Rosenblatt, Hélvio Guerra e Rafael Kelman. Eventuais erros são, é claro, de sua inteira responsabilidade.

Jerson Kelman é professor da COPPE-UFRJ, ex-diretor geral da ANA e da Aneel e atual presidente do CA da Eneva

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