Opinião
Pensando fora da caixa para controlar o furto de eletricidade
É preciso propor novas abordagens para resolver o problema e aperfeiçoar métodos não convencionais tentados no passado, tanto de inspiração social quanto tecnológica
João e José têm o mesmo nível de renda, são vizinhos e têm o mesmo número de filhos. João paga a energia elétrica que consome. José tem um “gato” e não paga nada. Prezado leitor, onde o consumo de eletricidade é maior? Na casa de João ou na de José?
Certamente você respondeu “na casa de José”. Afinal, ele não tem incentivo para economizar eletricidade pela qual nada paga. É possível, por exemplo, que José e seus familiares deixem o ar-condicionado ligado todo o tempo, mesmo quando ninguém esteja em casa.
José prejudica João duplamente. Primeiro, porque seu consumo clandestino causa sobrecarga nas instalações, resultando em eventuais apagões que afetam toda a vizinhança. Segundo porque parte do custo de atendimento aos transgressores (os Josés...) majora as contas de luz dos consumidores (os Joãos).
Light, Enel Rio, Amazonas Energia e outras distribuidoras com alto índice de Perdas Não Técnicas – PNT (eufemismo para furto de eletricidade) devem priorizar a redução do desperdício. É preciso propor novas abordagens para resolver o problema e aperfeiçoar métodos não convencionais tentados no passado, tanto de inspiração social quanto tecnológica, que foram abandonados exatamente porque eram não convencionais.
O problema atingiu tamanha magnitude que agora é preciso pensar e agir ousadamente. Significa que procedimentos concebidos para situações normais, em que é possível desconectar da rede os usos irregulares, mantendo-os desconectados, precisam ser adaptados à realidade.
Por exemplo, não é razoável invocar o Código de Defesa do Consumidor para proteger transgressores que acessam a eletricidade por meio de “gatos”. O interesse dos verdadeiros consumidores é que todo o uso irregular seja reprimido.
Sugere-se dois experimentos, um de orientação social e outro de orientação tecnológica. Para realizar ambos os experimentos, é preciso que as concessionárias selecionem um reduzido número de transformadores altamente problemáticos. Isto é, com baixíssima relação entre energia medida e energia fornecida. Todas as unidades habitacionais conectadas a esses transformadores, mesmo as não incluídas no Cadastro Único do Governo, devem ser cobradas pela tarifa social e equipadas com medição à distância, em tempo real.
No experimento social, o transformador funciona intermitentemente em função da razão entre a soma das potências registradas nos medidores domiciliares e a potência medida na saída do transformador. Por exemplo, o transformador ficaria ON enquanto a razão estivesse acima de 50% e OFF nos intervalos de tempo quando ocorresse o caso contrário, devido ao alto consumo dos aparelhos eletrodomésticos alimentados por “gatos”.
O objetivo do experimento seria acompanhar uma possível modificação comportamental da comunidade ao compreender que a intermitência no fornecimento de eletricidade poderia ser facilmente sanável com a diminuição do desperdício. O ideal é que mude a cultura de tolerância com o furto e o desperdício.
Há uma óbvia crítica ao procedimento: quando o sistema estiver OFF não apenas os Josés não terão eletricidade, mas também os Joãos. É claro que isso é injusto. Porém, mais injusto ainda é manter uma situação em que os justos continuem pagando pelos pecadores por prazo indeterminado. Se o experimento for bem-sucedido, haverá uma inflexão cultural com resultados benéficos para todos, justos e ex-pecadores.
No experimento tecnológico seria instalado um Sistema Antifurto – SAF na rede de baixa tensão para impedir que motores de geladeira e ar-condicionado funcionem quando conectados diretamente à rede de baixa tensão, sem passar pelos medidores. Porém, sem queimá-los. As lâmpadas e os demais eletrodomésticos conectados irregularmente à baixa tensão funcionariam quase normalmente. O SAF altera as características da corrente elétrica na saída do transformador e cancela essa alteração de forma criptografada na entrada dos medidores domiciliares.
Esses experimentos, caso realizados, devem ser acompanhados pelas instituições interessadas na solução do problema (por exemplo, MME, ANEEL, Governo do Estado, PROCON, Ministério Público...) e receber apoio financeiro, possivelmente por meio de um sandbox tarifário (Resolução ANEEL 966/21). O importante é não ter receio de pensar fora da caixa.
Jerson Kelman foi diretor-geral da ANEEL, presidente do Grupo Light e interventor na Enersul. Escreve na Brasil Energia a cada três meses.