Opinião

Os lobbies na contramão do planejamento técnico

É preciso concentrar o planejamento e a execução com o ONS e a EPE. Com o aumento da ação de lobistas no Congresso, não há a menor chance do sistema ficar equilibrado, física e economicamente. Caminhamos para o desastre.

Por Jerson Kelman

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Num sistema predominantemente hidroelétrico, a variabilidade hidrológica causa volatilidade no Custo Marginal de Operação - CMO e, consequentemente, no preço spot de energia. É fácil entender: quando os reservatórios das hidroelétricas estão cheios, o CMO é nulo porque qualquer acréscimo de demanda pode ser atendido desviando para as turbinas a água que seria vertida. Ao contrário, quando os reservatórios estão vazios, o CMO é igual ao menor custo de combustível dentre as térmicas ainda não despachadas ou, se todas já tiverem sido despachadas, ao “custo do déficit”. 

Se o sistema for constituído por usinas hidroelétricas com capacidade de regularização plurianual, e não a fio d´água, os reservatórios estarão mais frequentemente cheios do que vazios. Isso significa que os preços spot ficarão em patamares baixos por longos períodos e só excepcionalmente se elevarão para valores próximos ao custo do déficit. 

Portanto, num sistema predominantemente hidroelétrico, ao contrário de um termoelétrico, há grande incerteza sobre o fluxo de caixa baseado em receitas de venda de energia no mercado spot, o que afugenta investidores. Essa foi uma das razões da crise de 2001: faltou um sinal apropriado de preço para a expansão da geração frente a uma carga que crescia, resultando no desequilíbrio entre oferta e demanda, que se tornou visível na seca. 

Para corrigir o problema, a partir da reforma do setor de 2004 a receita da venda de energia passou não mais a depender do CMO e sim dos preços de contratos de longo prazo firmados entre geradores e distribuidoras, através de leilões públicos. 

Numa fase inicial, o único produto escasso era a energia. Havia sobra de potência e de serviços ancilares. Além disso, as usinas eram despacháveis. Por isso, e para acirrar a competição, vencia o leilão quem oferecesse o menor lance de R$ por MWh de “energia garantida”, sem preocupação com outros atributos que as usinas poderiam ou não ter.  

Numa segunda fase, outros atributos, além da energia, passaram a ser considerados no planejamento para garantir a segurança de suprimento. A EPE passou então a indicar leilões ainda usando a métrica de R$ por MWh, porém separados por tipo de usina, de tal forma que, tudo considerado, o resultado agregado fosse seguro. 

Numa terceira fase, na qual nos encontramos, a discricionariedade técnica na definição do mix de fontes energéticas foi substituída pela discricionariedade política, definida nas articulações entre lobistas desta ou daquela fonte com seus parlamentares preferidos. Tudo alimentado por leis que garantem subsídios para geradores e consumidores desta ou daquela fonte, incluídos nas contas de luz da maioria dos consumidores. Nessa bagunça, não há a menor chance do sistema ficar equilibrado, física e economicamente. Caminhamos para o desastre. 

Para evitar o pior é preciso reconhecer que é a dupla ONS-EPE quem sabe o que o sistema necessita e não a dupla Lobby-Congresso. Não sei se há caminho político para que essa obviedade resulte na ampla reforma que o setor necessita. Talvez seja necessária a eclosão de uma grande crise. De toda a forma, cabe a pergunta: como seria a expansão da geração e da transmissão com a dupla ONS-EPE novamente no comando?

A primeira alternativa é seguir o caminho que já começa a ser trilhado com os leilões de capacidade. A dupla ONS-EPE especifica os produtos que o sistema necessitará, tanto quantidade quanto localização, em termos de energia, potência e serviços ancilares. E organiza leilões específicos para a compra desses produtos. 

Alternativamente, a dupla ONS-EPE só aceita como unidade geradora a usina hipotética que contenha todos os atributos. Como nenhuma usina real satisfaz esse requisito, as usinas de diferentes fontes teriam que se consorciar para conjuntamente dispor de um mix de atributos que se aproximasse da tal usina hipotética. Ou seja, os próprios agentes de geração fariam os entendimentos societários e comerciais para assegurar uma configuração de geração segura para o país.

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