Opinião

Prorrogar ou não as concessões de distribuição de energia

Nesse cenário em que as concessões já estão em vias de vencer nos próximos três anos, a grande decisão que se coloca é: qual passo a ser adotado entre "Prorrogar as concessões em curso" ou "Realizar nova licitações"? Essa decisão é fundamental e, por uma questão de segurança jurídica, deve ser tomada ainda em 2024.

Por Wagner Victer

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O Programa de Privatização, chamado de "desestatização do setor elétrico brasileiro", começa em meados da década de 1990, ainda no primeiro governo FHC, sob grande polêmica, e serviu de paradigma para diversas outras operações de desestatização e de novas concessões do país, não só para o setor energético, mas em diversas outras áreas.

Na ocasião, pela fragilidade institucional diante da ausência de um modelo presente, se optou por, em 1996, contratar a consultoria Coopers & Lybrand (que em 1998 se transforma na PwC) para elaborar uma visão clara de como reestruturar o setor.

Em suma, foi adotado um paradigma similar ao modelo inglês da então Primeira-Ministra Margareth Thatcher, que privilegiava uma maior arrecadação no valor de venda das concessões, porém com fragilidades nas obrigações de investimentos. Na área de distribuição de energia elétrica, por exemplo, essa restrição ficou tão patente que posteriormente se identificou a necessidade de criar programas de universalização para eletrificação rural baseada em subsídios públicos como o "Luz no Campo" no próprio Governo FHC e o "Luz para Todos" no primeiro Governo Lula.

O fato é que a rapidez na criação de um modelo para licitar foi inicialmente suportada não só pelo BNDES, mas também pela Coopers & Lybrand, que tropicalizaram esse modelo internacional. Isso fez com que empresas como Light e Cerj (posterior Ampla e atual Enel) no Rio de Janeiro e Escelsa no Espírito Santo fossem vendidas até antes da criação e estruturação da própria agência reguladora, a Aneel, quando também se criam os modelos das agências como entes públicos e forma de equilíbrio a partir de uma teórica independência suportada por uma sabatina de dirigentes no parlamento associados a um "mandato".

Na ocasião, investimentos objetivos não eram sequer formalizados nos editais de muitas modelagens das vendas, até porque esses compromissos firmes, pelo modelo importado, impactariam os NPV's (Net Present Values) esperados se colocados, o que na época era entendido como um máximo inviolável. Como forma de mitigar a ausência dos compromissos de investimento, se estabeleciam mecanismos simples de acompanhamento da qualidade dos serviços, amadoristicamente monitorados como os chamados "DEC" e "FEC", indicadores médios de duração e de frequência de interrupções.

Um exemplo da particularidade de cada concessão foi o caso da Light do complexo de geração hidrelétrico em Piraí, que, apesar de não ser relevante em capacidade de geração, é o principal contribuidor para, via transposição, fazer a formação do volume principal hídrico da calha do Rio Guandu. Nesse contexto, a Light assumiu a responsabilidade sobre o principal manancial de águas que abastece toda região metropolitana Fluminense (cerca de 10 milhões de pessoas) na maior Estação de Tratamento de Água do mundo, pertencente a concessionária de saneamento Cedae.

No início da regulação e fiscalização desse processo, de forma dispersa, houve a tentativa da transferência pela Aneel de suas atribuições, via acordos de cooperação, para as agências reguladoras estaduais constituídas para regular e fiscalizar as concessões estaduais como distribuição de gás por dutos e os transportes. Contudo, o tema não prosperou, haja visto que as funções de "poder" de uma agência como "aplicação de multas" e "aprovação de reajustamentos tarifários" continuariam com a própria Aneel como representante do poder concedente. Da mesma forma, os Governos Estaduais estavam desestruturados em sua capacidade técnica, tanto que o Estado do Rio de Janeiro só recria sua Secretaria Estadual de Energia em 1999, que aliás ocupei como titular por 8 anos, quando pude acompanhar e participar de perto desse processo.

O setor elétrico do país avançou nos seus erros e acertos, com grandes ajustes, e nesse cenário em que as concessões já estão em vias de vencer nos próximos 3 anos, a grande decisão que se coloca é: Qual passo a ser adotado entre "Prorrogar as concessões em curso" ou "Realizar nova licitações"? Essa decisão é fundamental e por uma questão de segurança jurídica deve ser tomada ainda em 2024.

Ano passado, nessa indefinição do melhor caminho a seguir, o próprio Ministério de Minas e Energia (MME) abriu a Consulta Pública 152 de 2023 sobre o tema.

Nesse diapasão de incertezas, ocorreu nos últimos anos uma retração de investimentos de melhorias e de recomposição de ativos, o que gerou cases extremamente negativos e com evidência nacional, como o colapso no abastecimento, pela Light, na região da Ilha do Governador (com 250 mil habitantes), afetando até o Aeroporto Internacional do Galeão, e o colapso no abastecimento pela Enel de uma área turística importante como a Ilha Grande no Sul Fluminense. Isso sem falar nos graves problemas pela própria Enel no abastecimento em São Paulo que culminou com uma multa recorde pela Aneel da ordem de 165 milhões de reais que sequer se sabe se será de fato exercida pelo histórico de cobrança efetiva dessas penalidades, o que enfraqueceu a imagem do ente fiscalizador.

A redução das equipes de manutenção, a desmobilização de profissionais próprios e experientes em favor da terceirização, a obsolescência de equipamentos em subestações, dos sistemas de proteção, das linhas de média e de alta tensão e até a básica falta de poda de árvores evitando o contato com a redes, são alguns dos problemas que ficaram patentes no diagnóstico das razões da maioria das interrupções que aconteceram recentemente. Além disso, na rampa de partida das concessões, os executivos trazidos pela francesa EDF para Light e pela chilena  Chilectra para a então Cerj (Enel) adotaram postura arrogante e dissociada de uma gestão pública integrada, o que gerou atrasos em programas de melhorias e deterioração de ativos por falta de manutenção preventiva básica, como se relembra na periodicidade, quase semanal, da explosão das galerias subterrâneas da Light após os 12 primeiros anos da concessão.

Da mesma forma, o elevado nível de “perdas não técnicas”, os chamados "gatos", em conjunto ao grave risco envolvido no combate a perdas em comunidades, fez que certas concessionárias ultrapassassem os limites de perdas toleráveis que definem os repasses dentro do conceito da chamada "empresa padrão" da Aneel. Assim, esse conjunto de fatores, associados a períodos de gestão ineficiente, realmente comprometeram o fluxo financeiro das concessionárias.

A taxação forte pelos estados junto a um elevado conjunto de encargos e subsídios cobrados na chamada "Conta de Desenvolvimento Energético" transformou a energia elétrica no país em um insumo caro, o que forçou movimentos estabelecidos e autorizados por regulações da própria Aneel, como compra de energia como "consumidor livre" e a própria geração de energia solar "GD", com o aproveitamento do crédito da energia excedente, criando condições para que se deslocassem os melhores clientes das concessionárias para essas fontes de oferta remetendo para a concessionária somente a arrecadação pelo "uso do fio", obviamente não tão rentável como uma operação integrada para um bom cliente que já estava rentabilizado na carteira, em especial por serem ativos de distribuição já amortizados.

Em agravamento ao cenário, a Light, apesar de uma nítida melhoria em sua gestão após o último rearranjo acionário, apresentou, próximo ao final do período da concessão, uma solicitação de um tipo de recuperação judicial para equacionar seu passivo com fornecedores, o que criou um caráter adicional de incerteza ao processo decisório que, em condições usuais, se voltaria para a prorrogação, até porque certamente a área financeira do Governo Federal está na expectativa do recebimento de polpudas outorgas que viriam em uma eventual nova licitação ou até na eventual prorrogação.

Na prática, diante da qualidade dos serviços prestados e da deterioração dos ativos, o ânimo arrecadador se coloca como bastante questionável quando o que se requer, na prática, é que o novo caminho a ser adotado, ao contrário do passado, deva apontar para fortes investimentos com garantias firmes voltadas para obtenção de melhorias, e que não esteja focado somente em valores das outorgas.

Esse modelo desejável, aliás, só pode ser feito a partir de um minucioso diagnóstico técnico e prévio das melhorias físicas que devem ser implantadas, detalhando ao mínimo novas subestações e seus componentes, novas linhas de média e alta tensão, e eventualmente até um programa de recomposição dos chamados transformadores de rua (média tensão), chegando a questões básicas de adequação a estética urbanística contemporânea, como a distribuição subterrânea em áreas históricas, como por exemplo no Centro do Rio, cidades históricas e próximo a monumentos tombados pelos órgãos do patrimônio histórico.

Infelizmente, não se observam esses estudos prévios de investimentos sendo realizados e devidamente debatidos.

Nessa linha, especialmente no Rio de Janeiro, onde essa situação se colocará como uma ação inicial e, portanto, emblemática para o país, recentemente a Comissão de Defesa do Consumidor da Alerj oficiou a Aneel sobre a situação dessas concessões e obteve a confirmação do vencimento da concessão da Light para 04 de junho de 2026 e da concessão da Enel para 9 de dezembro de 2026. Nessa resposta, porém, fica bastante claro que Agência e o MME não definiram ainda o caminho a seguir, ou através da prorrogação da atual concessão ou via nova licitação.

A situação das concessionárias do Rio de Janeiro que se aproximam do fim do seu prazo original de concessão, e seu caminho a seguir, virou portanto uma situação a ser observada por todo o país e, certamente, vai requerer ampla participação de todos os agentes do setor como Aneel, MME, ONS e Ministério da Fazenda, além de agentes políticos e institucionais como Governo do Estado, Alerj, Prefeituras e Câmaras Municipais, além da articulação de entidades como Firjan, ACRJ e Fecomercio com os grandes consumidores. E, claro, também da sociedade, já que todos não possuem uma percepção positiva, até em função dos acontecimentos recentes e dos últimos anos, na qualidade do serviço prestado.

É uma discussão que requer muita maturidade e principalmente estudos técnicos bem objetivos e claros, coisas que não se observam em execução diante do iminente prazo do vencimento das concessões.

 

 

Wagner Victer é Engenheiro, Administrador, ex-Secretário de Estado de Energia, Indústria Naval e do Petróleo, e ex-Conselheiro do CNPE. Escreve mensalmente na Brasil Energia.

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