Opinião

Uso múltiplo dos rios e suas consequências

No passado, o inventário das bacias hidrográficas não considerava que os rios são necessários para várias finalidades. Diferente de hoje, com uso de uma plataforma que considere simultaneamente as dimensões ambiental, social, econômica e energética 

Por Jerson Kelman

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

No passado, o inventário das bacias hidrográficas – primeiro passo para construção de usinas hidroelétricas – consistia em achar a melhor “divisão de quedas” com o único objetivo de otimizar o aproveitamento do potencial hidráulico. Não se considerava seriamente que os rios são necessários para outras finalidades. Muito diferente do que poderia ser feito atualmente a partir de plataforma decisória que considera simultaneamente as dimensões ambiental, social, econômica e energética

Barragens servem para concentrar a queda e, quando criam um reservatório de regularização, servem também para reter água quando o rio está “gordo” (grandes vazões) e para soltar água quando o rio está “magro” (pequenas vazões). Ou seja, com a jusante de uma usina com reservatório, tanto as enchentes quanto as estiagens ficam menos frequentes e menos intensas.

Mudança de regime dos rios têm consequências. Algumas boas, outras más. Por exemplo, morrem menos peixes que, em condições naturais, durante estiagens severas, ficariam aprisionados nas lagoas marginais. Outro exemplo: diminui a frequência de transbordamentos, o que induz à ocupação de várzeas anteriormente desprovidas de valor econômico. 

Porém, a regularização não é plena e tanto as mortandades de peixes quanto os transbordamentos podem ainda ocorrer. Por exemplo, em uma cheia excepcional, é preciso abrir as comportas para extravasar o excesso de água. O objetivo é evitar o rompimento da barragem e consequente onda de inundação, semelhante a um tsunami. Nesses casos, o rio transborda, como ocorria antes da barragem, só que agora há construções onde não deveriam estar e seus proprietários tendem a atribuir “culpa” pelos prejuízos ao proprietário da usina hidroelétrica, mesmo quando se prova que a área inundada seria ainda maior se a barragem não existisse. 

Quando entrei no Cepel, 45 anos atrás, o setor elétrico começava a ser demandado para operar os reservatórios para atender outros usos. Trabalhei no desenvolvimento de metodologia para cálculo do “volume de espera” - um espaço vazio que se deixa nos reservatórios para amortecer as cheias e diminuir a probabilidade de vertimentos, ao custo da diminuição do valor esperado da produção energética. 

Ao longo das décadas seguintes, o setor elétrico passou cada vez mais a operar as usinas hidroelétricas de forma a não “pisar nos calos” de outros setores - abastecimento público (o único legalmente prioritário), ambiental, irrigação, navegação e turismo - resultando no acatamento de restrições operativas que foram incorporadas aos modelos adotados pelo ONS. Essas restrições vêm sendo acatadas em geral com pouca discussão, possivelmente devido ao “efeito carona” do MRE sobre os agentes de geração hidroelétrica. Raramente se avalia as consequências econômicas e, principalmente, se seria ou não possível realizar intervenções para atenuá-las. 

Por exemplo, durante anos a Chesf teve a obrigação de defluir ao menos 1300 m3/s de seus reservatórios para evitar problemas associados ao rebaixamento do nível de água, principalmente quanto ao “desafogamento” de algumas tomadas de água. Aliás, inconvenientes que ocorreriam de qualquer maneira nas secas extremas, mesmo se as barragens não existissem. 

Apenas recentemente a ANA e o ONS elaboraram conjuntamente uma regra operativa mais inteligente, que tem evitado o desperdício de água que ocorria no passado. O problema poderia ter sido resolvido muito antes se houvesse um arranjo que permitisse ao contribuinte ou ao consumidor arcar com o custo de algumas bombas flutuantes, que resolveria o problema a uma pequena fração do custo causado pelo desnecessário esvaziamento dos reservatórios. 

É preciso pesquisar casos semelhantes. Quais são as restrições operativas que podem ser resolvidas a baixo custo, resultando em significativo aumento de eficiência na produção de energia elétrica? Qual o arranjo legal e regulatório capaz de induzir os agentes de geração a tomar partido dessas oportunidades? 

Jerson Kelman foi o principal dirigente da ANA, Aneel, Light e Sabesp

Outros Artigos