Opinião
A revolução potencial do shale gas e do tight oil - Parte II
Para atender a acelerada demanda de gás como fonte substituta de outras mais poluidoras, alguns países adotam políticas públicas determinadas e grande esforço de investimento. O consumo global já ultrapassa os 4 trilhões de m3/ano. O shale já representa quase 80% do gás produzido nos EUA e em torno de 11% na China.
Co-autor: Kazumi Miura
De modo geral, todo óleo e todo gás são produzidos após intenso fraturamento das rochas. Ultimamente, poços horizontais e radiais de longo alcance, com múltiplos estágios que permitem atingir maior extensão de rochas e, consequentemente, maior liberação de hidrocarbonetos também alongam o nível de produção de cada poço.
Essa combinação de tecnologias, associada a rochas com maior concentração de hidrocarbonetos, tem permitido uma evolução muito rápida e cada vez mais econômica nesse modelo de produção, mudando inclusive o perfil produtor de alguns países. Neste artigo, continuamos focando nos progressos alcançados nos Estados Unidos e na China, onde a exploração do shale gás tem sido mais intensa.
Nos Estados Unidos os dados são os mais relevantes na indústria em todos os sentidos. Desde o incremento nas produções de óleo e gás, como na mudança da matriz energética, com menor emissão de gases de efeito estufa, até as facilidades para os licenciamentos de projetos, tudo tem contribuído para esse olhar.
Também é relevante a diversidade no fornecimento de serviços para atender a indústria, como equipamentos de perfuração de poços horizontais e equipamentos para fraturamento, além do esforço em geral da indústria para tornar os produtos químicos usados no fraturamento menos agressivos ao meio ambiente.
Quase 60 anos de História
Para entendermos melhor o desenvolvimento desse segmento, vamos enumerar os fatos que aconteceram na indústria americana e que tornaram esse setor competitivo com a indústria convencional de hidrocarbonetos.
- 1965: pela primeira vez um poço vertical foi fraturado com resultados positivos.
- 1976: the Eastern Gas Shales Project (EGSP) foi lançado fazendo em larga escala fraturamento de poços verticais.
- 1986: o primeiro poço horizontal do mundo foi feito com múltiplos estágios de fraturamento e monitorado com microssísmica.
- 1991: primeiro poço horizontal com múltiplo estágio de fraturamento foi implementado no Barnett gas field-USA.
- 1997: pela primeira vez foi usado em poço vertical o fraturamento com o chamado slick water, que é um tipo de fluido com água, areias e produtos químicos.
- 2002: o uso de múltiplos estágios de fraturamento e slick water em 7 poços horizontais produziu uma verdadeira revolução nos resultados.
- 2004: poços horizontais com múltiplos estágios de fraturamento e uso de slick water foi implementado em larga escala nos Estados Unidos.
- 2005: o fraturamento em larga escala foi implementado.
- 2006: o conceito de stimulated reservoir volume (SRV) pela primeira vez foi proposto.
- 2009: a ideia de redução dos espaçamento entre clusters foi introduzido.
- 2012: o múltiplo estagio, múltiplo Cluster e o LPG waterless fracturing test foi executado.
Desde então essa tecnologia vem sendo continuamente aplicada e com avanços. Mais de 100.000 poços foram fraturados usando essa tecnologia. A evolução dessa indústria nos Estados Unidos resultou numa verdadeira revolução na produção de gás, levando os Estados Unidos a se tornarem o líder absoluto desse segmento no mundo.
Evolução Tecnológica da indústria nos Estados Unidos com vários Milestones.
Evolução da produção do shale gas americano desde 1980.
Conforme mostra o mapa, as bacias sedimentares norte-americanas onde ocorrem os folhelhos estão espalhadas em quase todo o território do país, permitindo que a produção seja distribuída por uma rede de dutos com grande capilaridade e, em alguns casos, distribuídos localmente, com pouco custo de transporte. A distribuição das bacias, associada à qualidade dos folhelhos, em alguns casos a pouca profundidade, certamente contribuíram, junto com a decisão de política pública, para o enorme avanço desse segmento na indústria americana.
Distribuição das bacias americanas já em produção.
O aprendizado chinês
O conhecimento adquirido pela indústria americana com o desenvolvimento da tecnologia para produzir tanto o shale gas como o tight oil permitiu a outros países aproveitar essas conquistas e concentrar esforços na busca e desenvolvimento da atividade. E um dos que mais avançou foi a China, com reservas não convencionais de mais de 1.115,2 trilhão de pés cúbicos de gás e mais de 32 bilhões bbl de óleo, segundo estima a Energy Information Administration (EIA).
A aplicação de enormes esforços financeiros e técnicos, associados à decisão política de apoio à indústria, levou a produção desses reservatórios na China a avançar de forma exponencial a partir de 2010. A China depende dessa produção para atenuar o uso de fontes energéticas poluidoras, como o carvão e o óleo combustível.
Gráfico da evolução da produção chinesa de shale gas
A seguir, um curto histórico da evolução desse segmento na China, onde os recursos de shale gas são abundantes.
- 2004: o país deu início aos esforços em pesquisas.
- 2005: foi proposto o primeiro desenvolvimento desse tipo de poço.
- 2007: a CNPC e a Newfield Exploration iniciaram os estudos conjuntos na Bacia de Sichuan.
- 2008: dois projetos foram executados nas bacias Sichuan e Zhaotong.
- 2009: foi assinado MOU entre China e Estados Unidos para execução do primeiro projeto de shale gás.
- 2010: a Sinopec e CNPC realizaram o primeiro fraturamento em poço vertical na China.
- 2011: o governo aprovou o início da exploração e produção, em ritmo acelerado.
- 2012: o governo oficializou a aceleração desses recursos e a aplicação em larga escala do processo de fraturamento com todas as ferramentas usadas nos Estados unidos em três áreas confirmadas (Changning–Weiyuan, Zhaotong ae Yan'an) como produtoras de gás.
- 2013: as áreas possíveis de produção foram estabelecidas e pequena produção realizada.
- 2019: neste ano, já havia 1.092 poços fraturados e completados para produção. A China mantinha incremento forte da produção ano a ano, tornando-se rapidamente o segundo produtor global de shale gás.
Apesar de várias dificuldades e desafios ainda presentes na indústria, como a quantidade de água usada nos fraturamentos, a profundidade dos reservatórios e a infraestrutura para a distribuição, a produção alcançou a marca de 20,4 bilhões de m3 em 2020, representando 10,6% da produção de gás da China.
O mapa mostra grandes bacias sedimentares com presença desse tipo de rochas, o que certamente vai contribuir para o avanço da produção desses reservatórios.
Mapa das bacias produtoras de gás e de shale gas da China.
Estatísticas do governo chinês indicam que a Bacia de Sichuan já produziu mais de 60 bilhões m3 de shale gas, o que permitiu evitar a emissão de mais de 100 milhões de toneladas de CO2. Há indicações de descobertas de volumes elevados de shale gas em outras bacias da China, que levaram o governo a estimar grandes saltos na produção do shale nos próximos anos. Em 2021, a produção alcançou 23 bilhões de m3 e estima-se que em 2022 tenha fechado em 25 bilhões de m3. Para 2025, a estimativa é de 30 bilhões de m3.
Shale gas e o Clima
Há indicativos de que a utilização do gás oriundo do shale emita apenas 67% do CO2 emitido pelo gás associado ao óleo e apenas 44% comparado com o uso do carvão.
Por se tratar de uma fonte mais limpa comparada com o gás convencional, o governo chinês está empregando grande esforço para implementar e aumentar a exploração, produção e distribuição dessa fonte de energia.
Mesmo com todo esse aumento na produção, a participação do shale gas na China ainda representa cerca de 11% da produção total de gás do país, enquanto nos Estados Unidos representa em torno de 80%. No entanto há um grande esforço sendo feito pelo governo chinês para consolidar a indústria de gás natural, eleito como fonte principal de sua matriz energética, visando alcançar melhores níveis de descarbonização do país, uma vez que o consumo de carvão ainda tem participação bastante elevada na matriz energética.
A China, quarta maior produtora de gás natural do mundo incluindo o gás não convencional, depois dos Estados Unidos, Rússia e Iran, já é o terceiro maior consumidor mundial de gás, atrás dos Estados Unidos e Rússia. A importação do gás natural da China é intensa, incluindo LGN, o que permite o país casar o ritmo crescente do consumo com a redução progressiva da emissão de gases do efeito estufa. A China tem se mantido na vanguarda na busca de novas reservas de gás convencional, onshore e offshore, e de não convencional, mapeando todas as possibilidades existentes em seu território, com forte decisão política e esforço financeiro associado.
Distribuição dos principais produtores de gás natural do mundo
A emissão de CO2 da China em 2010 foi de 10 bilhões t e da ordem de 12 bilhões t 2021. O governo projeta o pico de emissão em 2030. Portanto o gás natural é muito importante para a transição energética chinesa, cuja meta de neutralidade de emissão é prevista para o ano de 2060. Tal estratégia requer muito esforço para uma economia que cresce há vários anos em torno de 5% aa, tem uma população superior a 1,4 bilhão de pessoas e ainda utiliza o carvão em mais de 50% de sua geração de energia.
O gráfico em pizza mostra quão importante é a meta chinesa para produzir gás internamente e reduzir a importação, que ainda representa 45% da demanda, somados gás natural e LGN
O esforço é mundial
Tendo em vista sua importância como fonte de energia limpa, menos poluidora do que óleo e carvão na geração de energia ou como fonte de calefação e uso doméstico, a indústria global de gás natural tem se desenvolvido de forma bastante acelerada, já alcançando a marca superior a 4 trilhões m3/ano de consumo. E, para atender essa crescente demanda, todas as possíveis fontes de reservatórios que possam conter gás são exploradas e na medida do possível produzidos, como tem feito os Estados Unidos, China, Argentina, Canadá e outros países.
Enquanto o gás não puder ser substituído por outras fontes renováveis de energia haverá um grande esforço mundial para manter e até aumentar essa produção, visando atender um consumo crescente previsto para os próximos anos. A indústria mundial de gás vai precisar de muita cooperação e trabalho conjunto para permitir o avanço da produção de gás, contando com a contribuição dos reservatórios complementares de shale gas e outros. Esperamos que possíveis restrições em alguns países, como no caso do Brasil, possam ser eliminadas e em breve esses reservatórios possam dar também sua contribuição como vem dando outros países.
O shale na Argentina
Outro país que tem feito enorme esforço e avanços na exploração e produção de shale gas é a Argentina. As reservas de Vaca Muerta, província de Nuequen, tem um dos mais rápidos crescimentos na exploração e produção de óleo e gás dos reservatórios ditos não convencionais (shale gas/oil), podendo alcançar 1 milhão barris de óleo equivalente em 2030, crescimento exponencial considerando que atualmente produz em torno de 390.000 bbl/dia de óleo e 105 milhões m3/dia de gás. Vaca Muerta pode ter a segunda maior reserva de tight oil do mundo e a quarta reserva de shale gas também. Atualmente tem mais de 30 sondas em atividade na bacia e todos grandes players internacionais estão presentes ou com produção ou em processo de exploração.
Tem contribuído para essa rápida evolução o fato de os poços apresentarem baixo declínio de produção e alta produtividade por poço. Há ainda desafios com elevados custos de perfuração e produção em geral e baixo nível de infraestrutura, tipo gasodutos e oleodutos e plantas de tratamento para permitir escoamento da produção para mercados externos e até mesmo dentro da própria Argentina. Mas tudo indica que esses desafios vêm sendo atenuados com aplicação dos conhecimentos, principalmente da indústria americana, e há forte indicação de que a Argentina se tornará, em breve, exportadora de óleo e gás.
Não há registros de desastres ambientais irreparáveis no mundo com o avanço da produção nesse tipo de reservatório e há uma grande busca para minimizar ou reduzir os efeitos dessa produção, como grande consumo de água, utilização de produtos químicos, tipos de espumas e nano partículas para manter fraturas abertas, reaproveitamento da água utilizada em outras perfurações e até para outras finalidades.
Por outro lado, algumas fontes preveem uma progressiva redução na produção mundial de gás, caindo para menos de 2 trilhões de m3/ano em 2050, o que, se confirmado, poderia ser um desastre para as ambições mundiais de redução das emissões de CO2.
O Brasil figura neste cenário com a 10ª reserva desses hidrocarbonetos.Por conta disso, já poderia começar um trabalho de mapeamento detalhado das bacias com presença desses reservatórios, formas de produção, análise mais acurada dos reservatórios de shale gas ou tight oil, presença dos possíveis aquíferos nessas bacias, aproveitamento dos levantamentos sísmicos já realizados e uso de outras fontes no fraturamento, além de perfuração horizontal, poços radiais de longo alcance em poços verticais até já existentes, com menores custos.
Ou seja, há um grande trabalho a ser feito, que em um primeiro momento cabe ao governo, através da ANP, identificar bacias com potencial de produção e métodos de explotação, visando atrair o setor privado para essas atividades com estímulos e incentivos.