Opinião

O Paradoxo da Oferta Doméstica de Gás no Brasil

A EPE espera que a produção de petróleo e de gás natural no Brasil duplicará nos próximos 10 anos, mas a oferta doméstica cresce de forma tímida deixando o país ainda dependente de importações de gás

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O relatório PDE 2027 recentemente apresentado pela EPE aumentou as projeções de produção de petróleo e gás no Brasil nos próximos 10 anos. A EPE espera que a produção de petróleo e de gás natural no Brasil duplicará nos próximos 10 anos. O Brasil se tornará um grande exportador de petróleo, com o volume exportado saltando do patamar atual de 1 milhão de barris/dia para cerca de 3,1 milhões de barris/dia. Entretanto, no caso do gás natural, mesmo com a produção bruta de gás crescendo na mesma velocidade que o petróleo, a oferta doméstica cresce de forma tímida deixando o país ainda dependente de importações de gás no horizonte de 10 anos. Como explicar tal paradoxo? Uma política de promoção da oferta doméstica poderia mudar este cenário?

O Gráfico 1 abaixo apresenta as estimativas da EPE para a produção bruta de gás natural no Brasil. Para se apurar a produção líquida de gás é necessário descontar da produção bruta o volume de gás reinjetado, a queima e o consumo nas unidades de produção. Este gráfico deixa claro que a reinjeção de gás cresce de forma mais acelerada que a própria produção bruta. Desta forma, espera-se que a taxa de aproveitamento do gás (participação da produção líquida na produção bruta) caia do patamar atual de 59% para 51% em 2027.

 

Gráfico 1 - Produção Bruta de Gás Natural

 

 

Fonte:  EPE – PDE 2027

 

Vale ressaltar que a produção líquida de gás não representa a parcela do gás que é efetivamente ofertada ao mercado brasileiro. Deste volume ainda deve-se descontar o gás absorvido nas Unidades de Processamento de Gás Natural – UPGNs. O Gráfico 2 apresenta parcela da produção líquida descontada do volume absorvido nas UPGNs. Além disso, desconta-se a parcela que é produzida e consumida nos sistemas isolados (basicamente Manaus) e do volume consumido por térmicas na boca do poço (gas-to-wire, basicamente Maranhão). Descontados estes volumes, estima-se que do total previsto de 217 MMm³/dia de produção bruta em 2027, apenas 73 MMm³/dia chegará efetivamente ao mercado das distribuidoras do Sistema Interligado.

 

Gráfico 2 - Oferta Líquida de Gás Natural

 

Fonte:  EPE – PDE 2027

 

O Gráfico 3 apresenta o balanço do gás natural considerando a oferta líquida estimada no Brasil e os diferentes segmentos de demanda, incluindo a demanda termelétrica com despacho máximo e médio. A oferta total atual incluindo toda a capacidade de importação da Bolívia e GNL é superior à demanda total considerando o despacho total das térmicas. Quando se considera o despacho médio esperado pela EPE, a demanda de gás fica praticamente inalterada no período.

Atualmente, a oferta doméstica de gás da malha integrada (52 MMm³/dia) é suficiente para atender apenas a demanda não térmica (48 MMm³/dia). A demanda termelétrica é atendida via importações da Bolívia e GNL. Esta situação continuaria inalterada até 2025. A partir desta data a oferta doméstica cresceria, deslocando parte das importações para atendimento da demanda termelétrica firme. Mesmo assim, o PDE 2027 descortina um horizonte de elevada dependência de importações, inclusive para atendimento do mercado firme até 2025.

 

Gráfico 3 – Balanço de gás natural da Malha Integrada do Brasil

 

 

Como explicar este aparente paradoxo de forte crescimento da produção e manutenção da dependência das importações?

Primeiramente, é importante chamar a atenção para a importância desta pergunta. O gás natural representa um elemento fundamental para a evolução da matriz energética e elétrica brasileira. Por um lado, existem importantes regiões do país que não têm acesso à esta fonte de energia, o que compromete a competitividade industrial destas regiões. Por outro lado, a penetração de fontes renováveis e variáveis na geração elétrica cria uma demanda crescente para a adoção da geração termelétrica a gás, como forma de garantir a segurança do abastecimento elétrico do país. Neste contexto, é necessária a elaboração e implementação de uma política de oferta de gás para o país, inclusive para orientar os vultosos investimentos necessários para viabilizar esta oferta.

A elaboração de uma política de oferta (importada ou nacional) passa por uma visão clara sobre os cenários de oferta de gás nacional, sob o risco de se promover uma importação de gás que comprometa a demanda para o gás doméstico. Neste sentido, é fundamental que todos os stakeholders envolvidos na cadeia do gás tenham clara noção do potencial e dos condicionantes da oferta doméstica de gás.

Quanto à produção bruta não há dúvidas importantes. Pode-se elaborar diferentes cenários para o ritmo da elevação da produção, mas como o gás é basicamente associado ao petróleo, sabe-se que a produção crescerá de forma acelerada. A principal dúvida recai sobre a parcela deste gás que será reinjetada. Na etapa atual de desenvolvimento dos campos do Pré-sal, ainda existem incertezas geológicas sobre o nível ideal (ou sobre o nível possível) de reinjeção de gás natural. De mesma forma, é importante avaliar se parcela do gás atualmente reinjetado poderá ser produzida no futuro quando a curva de produção de petróleo atingir sua fase de declínio.

Assim, pelo menos num primeiro momento, a decisão sobre quanto gás injetar leva em conta não apenas parâmetros técnicos, mas também as vantagens econômicas desta reinjeção quando comparada com a opção do aproveitamento comercial. Portanto, é necessário que os agentes reguladores e o MME avaliem de forma detalhada e deixem mais claro para a sociedade quais são os fatores determinantes (e de incerteza) por detrás da decisão entre reinjetar ou ofertar o gás do Pré-sal ao mercado.

Existem vários desafios técnicos e econômicos para o aproveitamento comercial do gás do Pré-sal. É importante destacar as especificidades técnicas do gás do Pré-sal que resultam em elevados custos de oferta. Os altos níveis de contaminação de CO2 e a grande distância da costa implicam em elevados custos de separação do CO2 e escoamento do gás. Ademais, existem os custos de processamento para a venda ao mercado nacional.

A elevada concentração de CO2 implica importantes desafios técnicos e econômicos, uma vez que a tecnologia convencional de separação não é viável para os reservatórios com elevada relação gás-óleo e alto grau de contaminação por CO2. A tecnologia disponível ocupa muito espaço nas unidades de produção, sendo inviável sua aplicação para tratamento de grandes volumes de gás contaminado. Ademais, os elevados níveis de CO2 impõem importantes desafios técnicos para reinjeção do gás natural, já que exigem equipamentos resistentes à corrosão provocada pelo contaminante.

Além dos desafios técnicos, existe um importante desafio econômico para o investimento na separação, escoamento e tratamento, uma vez que é o preço do gás e as condições de acesso ao mercado que determinam a viabilidade econômica desses projetos. A existência de um mercado de gás compatível com os grandes volumes dos projetos e com a característica de inflexibilidade da produção (gás associado) é uma condição necessária para os investimentos no aproveitamento comercial do gás.

Diante do grande potencial da oferta de gás doméstico e da sua importância para o país, fica claro que o tema não está recebendo a atenção devida pelas autoridades energéticas. O assunto passou ao largo das discussões do Gás para Crescer e pouquíssimos estudos oficiais podem ser encontrados. O PDE 2027 apresenta-se absolutamente lacônico nas explicações dos cenários de oferta ao mercado. Os gráficos com os cenários de oferta não são acompanhados de explicações satisfatórias. As incertezas não são apontadas e avaliadas adequadamente. Por exemplo, o PDE não prevê uma Rota adicional além das 3 já existentes, portanto a produção liquida de gás é limitada pela infraestrutura existente. Neste contexto todo o gás não escoado é reinjetado. Entretanto, sabemos que isso não é necessariamente possível em todos os campos.

A abordagem atual da política de oferta de gás não é adequada. É fundamental que o MME avalie adequadamente e dê máxima transparência sobre o potencial e os condicionantes da oferta doméstica de gás, inclusive para justificar suas decisões referentes às autorizações para importações de gás. Se em algum momento o país estiver deixando de produzir uma jazida descoberta ou deixando de ofertar ao mercado um gás produzido no país, ao mesmo tempo em que se importa gás, é necessário que o contexto desta decisão fique claro para toda a sociedade.

Além de dar o máximo de transparência sobre o tema, é importante também trabalhar numa agenda regulatória para reduzir as barreiras aos investimentos para a oferta comercial do gás (em particular do Pré-sal).

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