Opinião

Transição Energética no Mundo e na América Latina: Ambição e Realidade

Existe um grande gap entre as ambições apresentadas pelos países nas Conferências COPs e o que está acontecendo no terreno das indústrias e mercados de energia

Por Edmar de Almeida

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No final de julho deste ano aconteceu no Rio de Janeiro a nona edição do Encontro Latino-Americano de Economia da Energia - ELAEE. Trata-se de uma conferência que reúne a cada 2 anos especialistas que se dedicam ao estudo da Economia da Energia, vinculados à Associação Internacional de Economia da Energia – IAEE. Este evento reuniu 300 conferencistas do Brasil, países da América Latina e ainda contou com ilustres participantes de fora da região, principalmente da Europa e Estados Unidos. O tema da conferência foi: “Transição Energética, Mercados Energéticos Latino-Americanos e Caminhos de Desenvolvimento: Descarbonizando a Economia Mundial”.

Antes de entrar na discussão sobre a economia da transição energética, é importante salientar que a transição energética se tornou um tema da sociedade. Ou seja, o tema agora está na agenda dos mais diversos grupos sociais e políticos e vem deixando de ser um tema para ser debatido unicamente por especialistas do assunto. As consequências do uso das energias fósseis sobre as mudanças climáticas vem alarmando a sociedade e pautando o tema da energia.

Este fenômeno de “viralização” da discussão sobre energia cria uma nova complexidade para a elaboração de políticas energéticas qualificadas, coerentes com os objetivos do trilema energético: segurança energética, equidade energética e sustantabilidade ambiental.

Por isto, é fundamental qualificar o debate, colocando em evidência as incoerências e ineficiências das escolhas energéticas atuais, através de uma visão integrada, não só no que tange às mais diversas cadeias energéticas, mas também integrando as dimensões do mercado, da tecnologia e da política e regulação das atividades energéticas. Este é justamente o desafio ao qual se dedicam os especialistas em economia da energia.

Algumas conclusões podem ser tiradas da conferência ELAEE 2024. Uma primeira constatação é que existe um grande gap entre as ambições apresentadas pelos países nas Conferências COPs e o que está acontecendo no terreno das indústrias e mercados de energia. As metas de descarbonização do sistema energético até 2050 anunciadas pelos países responsáveis por mais de 80% das emissões mundiais parecem irrealistas quando comparadas com o ritmo atual de descarbonização das indústrias de energia.

Basicamente não seria exagero dizer que as políticas energéticas não estão entregando o que se colocou como objetivo em um dos 3 tripés do trilema energético, ou seja uma trajetória de descarbonização robusta, sustentável que aponte para uma emissão líquida zero até 2050.

Para desenhar políticas energéticas que entreguem os objetivos do trilema energético é fundamental buscar o entendimento do porque as políticas atuais não estão funcionando adequadamente. Algumas pistas podem ser apontadas a partir da discussão do ELAEE 2024.

Primeiramente, as políticas energéticas estão muito focadas sobre a mudança do perfil da oferta de energia e dão pouca atenção à mudança do perfil da demanda de energia. Não é difícil entender porque se dá mais atenção à oferta. Primeiro, é grande o lobby das indústrias renováveis de energia para angariar incentivos econômicos para competir com os fósseis. A premissa é que é necessário criar restrições à oferta de fontes fósseis ao mesmo tempo que se incentiva os renováveis, para viabilizar a descarbonização da economia.

No contexto da transição energética, a concessão de incentivos e subsídios aos renováveis são políticas aparentemente no regret e exigem baixo capital político para serem implementadas, ou seja, são fáceis de se justificar politicamente. Por outro lado, qualquer política para criar incentivos ou restrições pelo lado da demanda exige um grande capital político. Por esta razão, o foco dos Estados Unidos, Europa e muitos países da América Latina, inclusive o Brasil, foi criar programas de incentivos e subsídios às fontes renováveis de energia.

O programa Inflacion Reduction Act (IRA) nos Estados Unidos é um exemplo claro desta abordagem. Programas de incentivos para a geração distribuída (net metering), misturas obrigatórias de biocombustíveis, o programa Renova Bio e os novos incentivos ao Biometano e SAF no programa Combustíveis do Futuro são exemplos de abordagem pelo lado da oferta no Brasil. 

Este foco tem criado uma verdadeira corrida aos subsídios por parte das diferentes fontes renováveis de energia, independentemente da necessidade dos incentivos que é definido pelo estágio de maturidade econômica e tecnológica. Todas as fontes buscam o seu “direito” a incentivos/subsídios já que podem entregar uma das pontas do trilema.

Esta abordagem vem ocorrendo sem uma visão integrada dos recursos energéticos, com o surgimento de grandes distorções no mercados de energia que a longo prazo custarão muito caro aos consumidores e contribuintes, com o risco de comprometer os outros dois tripés da política energética (segurança de suprimento e equidade).

Está claro que é necessário uma nova abordagem para a construção de políticas energéticas para a transição. Esta nova abordagem inclui três atributos básicos complementares:

i) um maior foco no comportamento da demanda de energia;

ii) uma participação qualificada da sociedade no debate das políticas energéticas;

iii) e um planejamento energético inteligente.

Quanto ao foco na demanda, ele é necessário para garantir o equilíbrio do trilema energético. Incentivar renováveis e criar restrições a oferta de fósseis sem reduzir a demanda de fósseis tem potencial de comprometer a segurança do abastecimento, além de aumentar o preço dos combustíveis fósseis, o que compromete a equidade energética.

Neste sentido é importante incluir os consumidores no debate sobre política energética e nas escolhas difíceis que deverão ser feitas no futuro. Daí que é fundamental que a sociedade esteja adequadamente preparada para o debate. Se as autoridades energéticas não se dedicarem à preparar a população através da educação energética, serão as redes sociais e as narrativas virais dos reels e tiktok que vão ditar os rumos do debate energético. Assim, é fundamental qualificar e engajar a sociedade para uma discussão técnica, complexa e de grande impacto social.

Além do envolvimento qualificado da cidadania, o foco na demanda vai exigir o envolvimento das cidades. A transição energética tem sido objeto da política energética no âmbito nacional (federal) e regional. Mas as cidades são responsáveis por regular muitos temas afetos à demanda de energia tais como a mobilidade sustentável, gestão de resíduos urbanos e a eficiência energética em edifícios.

Assim, é fundamental mudar o paradigma atual do planejamento da transição energética. A construção de cenários e planos indicativos de descarbonização deve ser apenas um primeiro passo. É preciso avançar para um planejamento mais inteligente e sofisticar muito a análise e o planos de transição energética.

Os planos, roadmaps e cenários devem estar acompanhados do desenho de mercados energéticos coerentes. Como não é mais o governo que faz a oferta de energia, é fundamental avançar para o desenho dos mercados energéticos e instrumentos que permitirão entregar os roadmaps e cenários dos planos atuais.

Algums temas de economia da energia não podem ficar fora dos planos de transição:

i) desenho e implementação de mercados de carbono;

ii) políticas de incentivo à mobilidade sustentável;

iii) políticas de incentivos para a demanda de energia sustentável e a resposta da demanda;

iv) políticas para integração de fontes renováveis variáveis de energia (solar e eólica) que não comprometam a segurança do suprimento do setor elétrico.

A visão acima se aplica à reflexão sobre a transição energética de forma geral e é comum a todos os países. Mas existem muitas especificidades regionais, já que o nível de desenvolvimento, a complexidade e os problemas da indústria de energia não são os mesmos nos diferentes países e regiões do mundo.

O ELAEE 2024 mostrou que a América Latina tem suas especificidades que devem ser levadas em conta no debate para elaboração de políticas públicas para o setor. Em primeiro lugar, a região conta com um elevado nível de descarbonização do setor energético, em particular, por causa do setor elétrico no Brasil, na Colômbia, no Chile e no Uruguai, que possuem grande participação de fontes renováveis.

A grande participação de fontes renováveis de energia em algums países representa uma oportunidade para o desenho de políticas industriais para atrair indústrias intensivas em energia interessadas na descarbonização dos seus processos. Desta forma, é possível afirmar que existem oportunidades para políticas de desenvolvimento econômico na América Latina associadas à transição energética.

Outro ponto que chama a atenção na America Latina é o baixo nível de integração dos mercados energéticos. A falta de convergência econômica e regulatória entre os países dificulta a coordenação das políticas energéticas, apesar da retórica política de integração recorrente nas cimeiras regionais. Neste ponto, a transição energética pode ser uma nova  oportunidade de retomada dos esforços da integração.

O desenho e implementação de planos de transição energética inteligentes representam um tema perfeito para cooperação e intercâmbios entres os países da região. A grande diversidade das matrizes energéticas traz grandes oportunidades de aprendizado entre os países da região no que tange a elaboração e implementação de políticas públicas voltadas para a transição energética.

Outro ponto que ficou claro no debate do ELAEE 2024 é que muitos países da América Latina enfrentam problemas macroeconômicos graves que resultam em uma escassez de recursos para investimentos no setor de energia. O financiamento é uma barreira para a transição energética em muitos países. Este ponto merece atenção nas discussões regionais sobre transição energética.

Existem oportunidades para criação de políticas e instrumentos regionais de financiamento de projetos voltados à transição energética. Inclusive este deveria ser um tema para coordenação das posições políticas dos países da região no diálogo com países desenvolvidos, buscando criar mecanismos de financiamento da transição no plano internacional.

Conclui-se assim que convergência entre a ambição dos países e stakeholders e a trajetória de descarbonização das indústrias energéticas vai exigir uma mudança de paradigma na elaboração de políticas e planos de transição. É fundamental sofisticar e implementar uma visão mais integrada da política energética.

Este deve ser um esforço não apenas dos especialistas em economia da energia, mas de todos que trabalham com o setor. A política do cada um por sí e da “farinha pouco meu pirão primeiro”, não apenas não vai permitir atingir a ambição da transição, mas também vai criar incertezas e destruição de valor para todos os segmentos do setor de energia.

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