
Opinião
A Geoconomia da Transição Energética
Para justificar as políticas de promoção das fontes renováveis de energia vamos ter que falar da emergência climática, mas também dos custos e dos benefícios econômicos

Desde 2020, o mundo parecia caminhar para um consenso sobre a necessidade de promover e acelerar a transição energética. Este consenso se materializou na forma de alinhamento de países e empresas em torno das metas de emissões líquidas zero em 2050. A consolidação da percepção de que o mundo vive uma emergência climática empurrou os principais emissores do mundo em direção a compromissos de redução das emissões.
A partir destes compromissos, muitos países começaram a implementar políticas para incentivar fontes renováveis de energia e precificar as emissões de carbono através da introdução de mercados regulados de carbono. Dos 185 países que submeteram compromissos de redução de emissões (Nationally Determined Contributions - NDCs) no Acordo de Paris, 96 já implementaram ou têm iniciativas para implementar mercados de carbono.
Em 2024, iniciou-se um processo de revisão das políticas e estratégias de transição energética. Por um lado, várias empresas de petróleo reduziram suas ambições de investimento nas fontes renováveis de energia, em função da baixa rentabilidade dos projetos. Por outro lado, a eleição de Donald Trump nos EUA trouxe uma revisão radical da política norte americana de promoção da descarbonização da economia.
Estes dois movimentos representam um choque de realidade para as políticas de promoção da transição energética. Até 2024, vigorou uma visão um pouco romântica da transição energética: a ideia dominante era de que a transição energética não apenas era algo fundamental para garantir a sustentabilidade ambiental, mas também algo bom para a economia e acessível para todos os países. Entretanto, estamos aprendendo na prática que não é bem assim que funciona a economia da transição energética.
Nesta economia, a descarbonização é o produto. Este produto tem custos e preço. Quem quiser adquirir o produto tem que pagar por ele. Além disto, a produção deste produto acontece em escala global e sob regime de competição. Portanto, as empresas mais competitivas na oferta de produtos para descarbonização tendem a ter vantagens competitivas neste mercado.
Apesar da descarbonização da economia ser uma necessidade para todos os países, estamos começando a ver na prática que os custos e os benefícios da descarbonização não são iguais para todos. Quanto aos custos, alguns países, tais como o Brasil, têm grandes vantagens para produzir energia renovável em função da sua dotação de recursos naturais como terra e água para produção de biocombustíveis e energia solar e vento para produção de energia eólica.
Nestes países, é possível avançar na produção de energia renovável, com custos relativamente baixos e sem a necessidade de grandes subsídios. Porém, em outros países, o custo da produção de energias renováveis é elevado e precisa de muitos subsídios para se materializar.
Diversos países implementaram esquemas de subsídios diretos para apoiar energias renováveis, veículos de baixa emissão, baterias, hidrogênio e outras tecnologias limpas. Exemplos incluem a Lei de Redução da Inflação (IRA) nos Estados Unidos, o Fundo de Crescimento do Canadá, o Acordo Verde Europeu na União Europeia, o Esquema de Incentivo à Produção na Índia e a Lei de Promoção da Segurança Econômica no Japão. Desde 2020, os governos anunciaram cerca de USD 2 trilhões em apoio financeiro específico para investimentos em energia limpa.
Os gastos com subsídios para apoiar a descarbonização das economias estão passando por um crescente questionamento em função do elevado nível da inflação e das taxas de juros. Os governos estão sendo pressionados a promover ajustes na política fiscal, com redução dos gastos, inclusive reduzindo os subsídios. O posicionamento do presidente Trump nos EUA vai justamente nesta direção. Revisão dos subsídios e busca da redução da inflação via preços mais baixos para os derivados do petróleo.
Mas a verdadeira geopolítica da transição energética está associada a quem se beneficia mais do movimento da economia mundial em direção das fontes renováveis de energia. Neste ponto, não há dúvida em se apontar para a China como o principal país beneficiário deste movimento até o momento. A China definitivamente saltou na frente nas indústrias de energia renovável.
O país é responsável por aproximadamente 70% da capacidade de produção de baterias do mundo. Isso inclui tanto a produção de matérias-primas (como lítio, cobalto e níquel) quanto a fabricação de baterias acabadas. As maiores empresas de baterias do mundo são chinesas, tais como a CATL (Contemporary Amperex Technology Co. Ltd.) e a BYD, que têm uma participação enorme no mercado global de baterias para veículos elétricos.
Além disto, o país controla uma parcela significativa da cadeia de suprimentos global de matérias-primas essenciais para a produção de baterias, incluindo lítio, cobalto e grafite, o que lhe dá uma vantagem competitiva na fabricação de baterias.
A China não está na frente do mundo ocidental nas tecnologias de baterias por acaso. O governo chinês subsidiou e apoiou fortemente o crescimento de sua indústria de fabricação de baterias por meio de investimentos, incentivos para veículos elétricos e desenvolvimento de infraestrutura. O mercado interno de veículos elétricos, em rápido crescimento da China alimentou ainda mais sua capacidade de produção de baterias. Em 2023, cerca de 60% das vendas globais de veículos elétricos ocorreram na China.
Por outro lado, a China domina a indústria global de fabricação de painéis solares, controlando todos os estágios de produção, incluindo polissilício, lingotes, wafers, células e módulos, com participação de 80% nas vendas globais de painéis. A diferença de custo de produção de painéis na China e fora da China é muito elevada, tornando uma tarefa muito difícil para outros países competirem em pé de igualdade neste mercado com empresas chinesas.
Diante do contexto acima, o crescente questionamento das políticas atuais de promoção de energias renováveis se insere em uma disputa geoeconômica mais ampla. Nos Estados Unidos, este questionamento é mais acentuado porque justamente o país é “campeão mundial” na produção de petróleo e gás. Cada vez mais pessoas questionam por que penalizar uma indústria na qual os EUA são competitivos e subsidiar fontes renováveis de energia que dependem de importação de tecnologias e equipamentos da China.
As assimetrias de competitividade dos países nas fontes renováveis de energia, tanto do ponto de vista do custo de produção quanto do ponto de vista da cadeia produtiva, são questões que não poderão mais ser desprezadas no debate sobre transição energética. A fase romântica do debate passou. Para justificar as políticas de promoção das fontes renováveis de energia vamos ter que falar da emergência climática, mas também dos custos e dos benefícios econômicos.
Algumas questões importantes terão que ser respondidas pelas autoridades energéticas que buscam acelerar a transição energética. Em primeiro lugar, qual é o montante de subsídios pagos pelos consumidores e/ou governo para promover as fontes renováveis?
No Brasil, por exemplo, tem se adotado uma série de incentivos para as energias renováveis, que criam custos que não são totalmente transparentes para os consumidores, mas que no final do dia devem ser pagos. Este é o caso, por exemplo, do subsídio na forma de redução dos custos de conexão da geração renovável na rede de transmissão e distribuição.
Outro exemplo é o fato de a geração renovável variável gerar uma grande demanda de flexibilidade na geração, que deve ser coberta através da contratação de térmicas muito caras para garantir a segurança do abastecimento.
Os mandatos de mistura de biocombustíveis na gasolina, diesel e agora no gás natural também geram custos adicionais relevantes para os consumidores. É importante não apenas que fique claro o custo para a sociedade, mas também que se faça uma avaliação criteriosa para definir quais incentivos são realmente necessários.
Em tempos de inflação elevada e capacidade fiscal reduzida para apoiar as energias renováveis, vai ser cada vez mais desafiador levantar recursos do tesouro ou aumentar ainda mais os encargos sobre a conta de energia.
Outro ponto importante a ser avaliado é a dependência fiscal dos países das fontes não renováveis de energia. O setor de óleo e gás natural são grandes geradores de renda para o Estado, tanto em países produtores, como em países consumidores. No Brasil, o Estado arrecada royalties, participações especiais sobre a produção de petróleo e gás, ICMS, Pis-Cofins, Cide e ISS sobre gasolina e diesel, além do IPVA dos veículos a gasolina e diesel.
É importante reconhecer a relevância da arrecadação do setor de óleo e gás e discutir como substituir estas receitas. Até o momento este tema não está devidamente avaliado no Brasil. Assim, é fundamental uma reflexão sobre como o Estado pode substituir estas receitas, caso queira promover a difusão dos veículos elétricos e restringir a produção de petróleo no país.
Finalmente, é importante considerar a geopolítica da transição energética. Basicamente, é necessário criar políticas industriais e de inovação voltadas para domínio de uma cadeia de valor que hoje está praticamente monopolizada pela China.
Esta discussão é bem mais complexa do que temos visto no debate até o momento. Não é apenas uma questão de implementar tarifas e realizar acordos para ter acesso aos minerais críticos, mas de como desenvolver tecnologias inovadoras em segmentos de altíssimo risco e complexidade tecnológica. Países como o Brasil terão que buscar uma estratégia de inserção nesta cadeia de valor, a partir das suas vantagens comparativas.
Finalmente, vale ressaltar que o grande perigo do questionamento das políticas atuais para transição energética é o retrocesso do negacionismo climático. Este retrocesso é perigoso não apenas para o clima do mundo, mas também porque significaria abandonar o jogo da geopolítica da transição energética.
Não há dúvidas de que haverá ganhadores e perdedores neste jogo. Alguns países poderão alcançar a descarbonização com menor custo e mais benefícios em termos de geração de renda e emprego. Outros poderão avançar na descarbonização com elevado custo e com grande dependência tecnológica no setor energético. Outros simplesmente não vão avançar na descarbonização da economia. Estes últimos certamente serão os que estarão em pior situação, porque simplesmente estarão fora do jogo da economia do futuro.