Opinião
Precificação horária e a geração elétrica híbrida
É possível esperar um aumento da volatilidade diária dos preços de energia em um cenário de recuperação da demanda, no qual projetos de geração solar poderão ser penalizados por gerar apenas em momentos de menor preço
Coautor: Vinícius dos Santos
A transição energética em curso no setor elétrico mundial está produzindo profundas implicações econômicas, regulatórias e tecnológicas para o setor elétrico. Uma das principais características do processo de transição é a difusão de fontes renováveis variáveis. Ou seja, fontes cuja geração não pode ser controlada e depende da fonte primária de energia, como o sol ou o vento. Em particular, a forte difusão da geração solar tem um impacto muito grande sobre a característica da demanda de energia despachável dos sistemas elétricos. A geração solar gera uma forte queda na demanda de energia despachável durante o dia e um grande problema de rampa de geração entre 16 e 20 horas.
Esta mudança da curva de demanda ficou conhecida com o surgimento da Curva do Pato (Figura 1). A evolução da curva de demanda diária de energia na California ilustra claramente a transformação na característica da demanda de energia com a difusão da energia solar distribuída. À medida que a capacidade de geração solar na Califórnia continua a crescer, a queda ao meio-dia na carga líquida a ser atendida através de usinas despacháveis está diminuindo, chegando a ficar negativa em 2023, apresentando grandes desafios para os operadores da rede, como é possível observar na figura abaixo:
Este mesmo perfil de curva de demanda de fontes despacháveis vem acontecendo no norte do Chile, na Espanha e Sul da Austrália.
Uma das consequências do surgimento da Curva do Pato é a introdução de mudanças no desenho do mercado do setor elétrico para valorizar a flexibilidade da geração e a estocagem da energia. Ou seja, diferentes países mudaram a forma de precificar a energia no mercado atacadista, com a implantação de sistemas de preços horários. Neste sistema, o preço da energia tende a variar com a curva de carga e, principalmente, com a necessidade de despacho de fontes mais caras ou de estocagem de energia nos períodos de pico da demanda (pescoço do pato). A introdução de novos mecanismos de precificação dos serviços ancilares para garantir a oferta nos períodos de demanda elevada também faz parte da tendência de revisão dos desenhos dos mercados elétricos.
A precificação horária da energia tem contribuído para mudar a economia da geração elétrica e incentivar a estocagem da energia. Por esta razão o perfil dos projetos de geração centralizada de energia vem mudando rapidamente nos Estados Unidos. Rand et al (2023), da Universidade de Berkeley, fizeram um levantamento da evolução dos projetos que aplicaram para ter acesso às redes de transmissão nos Estados Unidos e verificaram não apenas um crescimento explosivo da intenção de investir em geração renovável solar e eólica, mas também em estocagem de energia elétrica. Os projetos de estocagem identificados são 99% com baterias. Chama também atenção o fato de que cerca da metade dos projetos de usinas solar são híbridos, principalmente com sistemas de estocagem.
Existem diversas combinações tecnológicas possíveis para promover a hibridização de sistemas de geração existentes ou novos, tais como: usina eólica com fotovoltaica e baterias; usina hidráulica com fotovoltaica; térmica a biomassa com usina a gás e fotovoltaica; entre outros. As diferentes combinações vão depender das oportunidades para a redução do custo de geração pelo aproveitamento de infraestruturas comuns e da complementaridade das fontes de geração. Ademais, podem existir ganhos importantes ligados à capacidade de adaptação da oferta de energia às características da demanda e redução dos custos de transmissão da energia.
No Brasil, a Aneel regulamentou as usinas híbridas e associadas em 2021 através da Resolução Normativa No.954. Essa regulamentação se aplica a centrais com potência superior a 5 MW, também engloba centrais associadas. A Central Geradora Híbrida é definida como “instalação de produção de energia elétrica a partir da combinação de diferentes tecnologias de geração, com medições distintas por tecnologia de geração ou não, objeto de outorga única”. Já as Centrais Geradoras Associadas são definidas como duas ou mais instalações, com a finalidade de produção de energia elétrica com diferentes Tecnologias de Geração, com outorgas e medições distintas, que compartilham fisicamente e contratualmente a infraestrutura de conexão e uso do sistema de transmissão.
A precificação horária no Brasil foi introduzida em janeiro de 2021, quando a CCEE passou a calcular o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) diariamente para cada hora do dia seguinte com base no Custo Marginal de Operação (CMO), considerando a aplicação dos limites máximos (horário e estrutural) e mínimo vigentes para cada período de apuração e para cada submercado1. O PLD é um preço de referência utilizado para liquidar as diferenças entre a energia contratada e a energia efetivamente gerada e consumida. Porém, como existe um excedente de capacidade de geração estrutural no Brasil, o PLD horário vem variando pouco nos últimos dois anos. Quase sempre, os valores do PLD situam-se no patamar mínimo para todas as horas do dia. No entanto, em alguns dias de maior demanda de energia, os preços variaram de forma muito importante ao longo do dia.
Apesar da evolução do arcabouço regulatório, as usinas híbridas e a estocagem de energia ainda não estão recebendo a atenção que merecem no Brasil. Entretanto, em um cenário de recuperação da demanda de energia no Brasil é possível esperar um forte aumento da volatilidade diária dos preços de energia. Neste cenário, projetos de geração solar poderão ser fortemente penalizados por gerar apenas em momentos de menor preço da energia. A resiliência do negócio da geração vai depender da antecipação da evolução do contexto do mercado e da inovação na estratégia de produção e comercialização de energia.
EIA (2023). As solar capacity grows, duck curves are getting deeper in California. Disponível em: https://www.eia.gov/todayinenergy/detail.php?id=56880.
EPE (2018). Usinas Híbridas: uma análise qualitativa de temas regulatórios e comerciais relevantes ao planejamento. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-232/topico-393/NT%20EPE-DEE-NT-011-2018-r0%20%28Usinas%20h%C3%ADbridas%29.pdf
Rand, et al. (2023). Queued Up: Characteristics of Power Plants Seeking Transmission Interconnection. Disponível em https://emp.lbl.gov/sites/default/files/queued_up_2022_04-06-2023.pdf
1 Conferir https://www.ccee.org.br/login/pages/pld/index.html