Opinião

Desafios e oportunidades para transição energética nas cidades

Os projetos de transição energética podem ser mais atraentes para a iniciativa privada, cujo envolvimento vai depender de ações e políticas para redução do risco do investimento. Neste ponto, a regulação energética federal e local são fundamentais

Por Edmar de Almeida

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À medida que o debate e reflexão acadêmica sobre a transição energética avança, fica cada vez mais claro o importante papel das cidades na jornada da transição. Isto porque as políticas locais têm um grande impacto no padrão da demanda de energia, particularmente nos setores de transporte, habitação e serviços. Cerca de 70% das emissões energéticas acontecem nas cidades (IEA, 2021). Ademais, as regiões metropolitanas também são particularmente vulneráveis às mudanças climáticas, por terem grande infraestrutura exposta aos extremos climáticos e elevada concentração de população de baixa renda (IAB, 2023 e VERA at al., 2023).

As cidades têm grande poder de decisão sobre aspectos fundamentais para a demanda de energia tais como: i) gestão do espaço público onde está instalada grande parte das redes de energia elétrica e gás natural; ii) gestão dos resíduos urbanos que podem ser aproveitados para geração de energia; iii) planejamento da mobilidade urbana, que é um dos principais focos de emissões energéticas; iv) eficiência energética em edifícios através da definição de padrões de construção; v) educação ambiental e energética para promoção de hábitos de consumo energético sustentáveis; vi) além da promoção de políticas locais para combate à pobreza energética e suas consequências;

Por esta razão, é crescente o número de cidades que têm se engajado no tema da transição energética, através do desenvolvimento de uma governança específica para o tema, metas para emissões líquidas zero, e implementação de projetos e programas de descarbonização. Isto é verdade particularmente na Europa, América do Norte, Austrália e Japão, onde as cidades que têm metas de transição energética abrigam mais de 50% da população total do país/região (Figura 1).

Figura 1 - Cidades que se comprometeram com algum tipo de meta de emissões líquidas zero

Fonte: DATA-DRIVEN ENVIROLAB & NEWCLIMATE INSTITUTE (2020).

 

No Brasil, o tema da política energética é tradicionalmente um assunto federal e em menor grau estadual.  Por esta razão, ainda é bastante tímido o engajamento de prefeituras no tema de transição energética no país. As prefeituras brasileiras precisam se apropriar› deste tema, através de uma capacitação sobre o tema das mudanças climáticas e energia e a criação de uma governança para promoção da transição energética local. Esta governança deve ser transformadora. Isto é, deve estar focada na mudança dos padrões de consumo de energia na cidade (BULKELEY, 2023).

Uma governança transformadora é uma gestão especializada e focada em intervenções e experimentos que impulsionam planos de adaptação climática e de transição ambiental e energética. Isto é, uma governança voltada para a promoção de mudanças transformadoras de uma forma mais abrangente pela cidade. A experimentação possui um papel importante neste governo pois ela é um processo contínuo de aprendizado na prática, tradução e mediação de diversas visões de futuros urbanos. Uma característica de uma cidade que possui este tipo governança é que ela está diretamente alinhada com as agendas climáticas globais, os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da ONU e a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do país. Esta governança atua de uma forma colaborativa com outras cidades e outras instâncias governamentais, buscando compartilhar informações e possíveis soluções para descarbonização (BULKELEY, 2023).

A criação de uma governança transformadora para transição energética deve se inspirar em boas práticas de governança climática e da transição energética em outras cidades, e passa pelas seguintes ações:

  • Criação de uma secretaria ou sub-secretaria focada em clima e transição energética
  • Identificação de casos de sucesso de políticas locais de descarbonização
  • Promoção da experimentação e inovação no mercado energético local
  • Elaboração de um plano de descarbonização: metas, capacitação, instrumentos e programas
  • Engajamento com o setor privado local na elaboração de parcerias para implementação do plano de descarbonização

Esta governança transformadora vai viabilizar a implementação de políticas e projetos fundamentais para aceleração da transição, tais como:

  • Políticas e projetos em mobilidade sustentável
    • Desenho e implementação de planos estratégicos de mobilidade sustentável, incluindo a abordagem de Desenvolvimento Sustentável Orientado ao Transporte (DOTS), com a promoção de bairros compactos e de alta densidade, com espaços com vários usos, serviços, espaços públicos seguros, favorecendo a interação social.
    • Descarbonização da frota de transporte público
    • Políticas locais para eletrificação da frota de veículos
    • Política e parcerias para instalação de carregadores públicos
    • Difusão de carregadores em edifícios públicos e privados
  • Promoção da eficiência energética em edifícios
    • Projetos para construção civil sustentável
    • Promoção de tecnologias de conservação de energia em edifícios
  • Políticas e projetos com Soluções Baseadas na Natureza – SBN
    • Edifícios verdes e sustentáveis com telhados e paredes verdes
    • Promoção e restauração de uma rede de espaços verdes, áreas naturais e corredores ecológicos integrados à paisagem urbana.
  • Gestão de resíduos e economia circular
    • Coleta seletiva de bioresíduos para produção energética sustentável
    • Política e projetos para reciclagem de óleo de cozinha usado (UCO - Used Cooking Oils)
  • Planos para net-zero districts com experimentação de estratégias de descarbonização
  • Política de financiamento para inovação em transição energética local
    • Parcerias em financiamento
    • Fábrica de projetos
    • Editais para startups voltadas para transição energética local
  • Iniciativas de participação e educação comunitária
    • Integração da sustentabilidade energética educacional local
    • Projetos sociais voltados para sustentabilidade ambiental e energética local

As oportunidades para projetos e políticas em transição energética são muito grandes e diversificadas. Entretanto, para aproveitar estas oportunidades não basta ser capaz de gerar projetos de alto potencial e retorno. É fundamental ter acesso a fontes de financiamento público e privado. Para isto, é fundamental implementar estratégias para estruturação financeira de projetos com tamanho e qualidade suficiente para investidores institucionais. Neste ponto, é importante diferenciar projetos com perfil de financiamento público dos projetos que podem ter participação da iniciativa privada.

Tipicamente, os projetos de adaptação local às mudanças climáticas possuem um perfil para financiamento público, já que basicamente envolvem obras públicas para prevenção dos impactos de fenômenos climáticos extremos (elevação do nível do mar, enchentes, ondas de calor, deslizamento de encostas e queda de árvores).

Já os projetos de transição energética podem ser mais atraentes para a iniciativa privada. O envolvimento da iniciativa privada vai depender de ações e políticas para redução do risco do investimento. Neste ponto, a regulação energética federal e local são fundamentais. Políticas como mercado de carbono, metas de descarbonização, códigos de eficiência energética, incentivos à frota descarbonizada, são fundamentais para reduzir risco e alinhar as visões de futuro dos agentes econômicos privados. O investimento privado também pode ser alavancado através de instrumentos financeiros como Parcerias Público-Privadas (PPPs), fundos administrados por bancos de desenvolvimento tais como o BNDES, BID, Banco Mundial, CAF, BNB, e o Banco da Amazônia. Cabe mencionar ainda o papel dos Títulos Verdes, que são uma alternativa importante para acessar recursos do setor privado nacional e internacional para projetos de descarbonização.

A necessidade de investimentos para se atingir a meta de emissões líquidas zero é enorme e provavelmente a disponibilidade de recursos públicos e privados atual não está à altura do desafio. Entretanto, o que está faltando nesta fase inicial da jornada da transição não é dinheiro. Mas sim bons projetos para investimento privado. Por isto, o gargalo inicial é o adequado engajamento do setor público local na adoção de uma governança da transição energética que permita criar as condições de contorno para o surgimento dos bons projetos. A aproximação das eleições municipais no Brasil representa uma grande oportunidade para colocar o tema do papel das cidades na transição energética e para a mudança da estratégia de desenvolvimento, tendo a sustentabilidade ambiental e energética como uma das alavancas da atividade econômica local.

 

Referências:

ALMEIDA, E. (2023). Transição Energética nas Cidades: Agenda e Oportunidades - Núcleo KPMG/IEPUC de Transição Energética. Disponível em: http://iepuc.puc-rio.br/dados/kpmg/Seminario-IEPUCTransi%C3%A7%C3%A3oEnergetica_e_as_cidades-2024.pdf

BULKELEY, H. (2023). Managing Environmental and Energy Transition in Cities: State of the Art and Emerging Perspectives - Durham University e Utrecht University. Disponível em: https://www.oecd.org/cfe/regionaldevelopment/Bulkeley-2019-Managing-Transition-Cities.pdf

DATA-DRIVEN ENVIROLAB & NEWCLIMATE INSTITUTE (2020). Accelerating Net-Zero: Exploring Cities, Regions, and Companies’ Pledges to Decarbonise. Disponível em: https://datadrivenlab.org/wp-content/uploads/2020/09/Accelerating_Net_Zero_Report_Sept2020.pdf

IAB (2023). Emergência Climática e Cidades. Disponível em: https://www.iabsp.org.br/wp-content/uploads/2023/10/231027_Livro-Digital.pdf

IEA (2021). Empowering Cities for a Net Zero Future. Disponível em: https://www.iea.org/reports/empowering-cities-for-a-net-zero-future

VERA, F., URIBE M. C. e CASTILLO, S. (2023). Ação Climática e o Acordo de Paris: o papel das cidades da América Latinas e do Caribe - International Development Bank. Disponível em: https://publications.iadb.org/publications/english/document/Climate-Action-and-the-Paris-Agreement-the-role-of-cities-in-Latin-America-and-the-Caribbean.pdf

 

Edmar de Almeida é professor e pesquisador do Instituto de Energia da PUC-Rio. Escreve na Brasil Energia a cada quatro meses.

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