Opinião

A crise institucional do setor elétrico brasileiro

Por Redação

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A questão fundamental colocada para o setor elétrico brasileiro é se as suas instituições são capazes de gerar uma coordenação suficiente para fazer face à crescente complexidade que caracteriza as relações entre os diversos agentes econômicos e sociais presentes nesse setor.
Sob essa perspectiva institucional, a evolução do setor elétrico brasileiro nas últimas três décadas é fortemente marcada por idas e vindas, avanços e recuos, crises e superações.

Nossa dotação institucional ao longo dos últimos trinta anos não foi capaz de prover, de forma sustentada e estável, uma coordenação adequada à crescente complexidade de nosso sistema elétrico. Ou seja, há um constante déficit institucional que cresce até gerar uma crise, decresce no momento seguinte de recuperação, para tornar a crescer em seguida e produzir uma nova crise.
Assim, embora nossas instituições setoriais sejam capazes de mobilizar os recursos necessários para superar as crises, elas não são capazes de antecipá-las e, acima de tudo, de evitá-las.

Se no fim da década de 1970 o país alcançou um equilíbrio entre uma complexidade elevada nas relações técnicas, econômicas e políticas no interior de seu setor elétrico e uma também elevada capacidade de coordenação, a década seguinte assistiu a uma explosão dessa complexidade e à deterioração dessa capacidade de coordenação que implodiu o modelo setorial vigente até então.

A década de 1990 viu uma tentativa frustrada de reverter esse quadro que gerou um dos maiores desastres setoriais, que foi o racionamento de energia elétrica. Desastre anunciado uma vez que as reformas noventistas ampliaram a complexidade da indústria elétrica brasileira – mediante a privatização e a tentativa de introduzir a competição – sem o correspondente aumento da capacidade de coordenação setorial. Dessa maneira, o déficit institucional foi às alturas, implodindo o novo modelo em implantação e gerando o histórico “apagão”.

O modelo institucional nascido em 2004 procurou enfrentar o problema da coordenação, mediante a criação de um conjunto de regras – garantia do suprimento –, mecanismos – leilões – e organizações – EPE, CMSE. E, em certa medida, essa estratégia foi bem-sucedida durante a década de 2000.
Mais uma vez, contudo, a complexidade entrou em uma nova espiral de crescimento e uma sequência de eventos começou a ser engendrada.
No que diz respeito à cadeia produtiva e às empresas, o processo iniciado nos anos 90 de desverticalização e fragmentação do controle econômico seguiu aumentando o número de agentes na atividade elétrica, tornando mais difícil a coordenação econômica.

O mesmo fenômeno ocorreu com os agentes sociais e políticos, desenhando uma fragmentação de interesses que torna a gestão dos conflitos mais difícil e custosa, e abrindo espaço para uma judicialização que só aumenta as incertezas e os custos do setor, tendo impactos desastrosos sobre o investimento e a expansão.
Por outro lado, a forte e continuada perda de capacidade de regularização dos nossos reservatórios deu à hidraulicidade um explosivo potencial de geração de desequilíbrios técnicos, econômicos e políticos.

Nesse quadro de crescente complexidade e capacidade de regularização limitada, um regime hidráulico extremamente desfavorável produziu efeitos econômicos e sociais negativos que se propagaram de forma imprevisível e incontrolável pelo sistema.
A agenda mínima comum, construída pela coordenação gerada pelo modelo institucional vigente desde 2004, implodiu em várias agendas individuais e a estratégia dos agentes passou a ser simplesmente fugir do prejuízo.

Nesse contexto de tensões crescentes, a equivocada estratégia do governo de intervenção unilateral no sistema estreitou os espaços de discussão, reduzindo concretamente a possibilidade de coordenação efetiva dos interesses dos agentes do setor.

Essa redução gerou de imediato uma desmobilização efetiva dos recursos desses agentes para a saída da crise, fazendo com que os únicos recursos disponíveis passassem a ser os do próprio Estado. No entanto, se esses recursos foram suficientes para, em um primeiro momento, bancar  a significativa  transferência de renda do setor público para o setor privado, via MP 579, eles não o foram para socorrer as distribuidoras, obrigando o governo a recorrer a um pouco ortodoxo empréstimo bancário via CCEE para tentar resolver o problema mediante uma solução “privada”.

Em síntese, os recursos do Estado são limitados e não bastam para alavancar a saída da crise.
Nesse sentido, usar esses recursos para garantir o enforcement estatal no processo de coordenação é um indício de fragilidade institucional, não o contrário. Principalmente quando a limitação desses recursos é evidente para os agentes, que sabem das restrições fiscais enfrentadas pelo governo. Essa é uma estratégia de coordenação por pressão que tem vida curta, porque o cacife da banca é limitado e, portanto, o seu poder de coerção também o é. E os agentes sabem perfeitamente disso. Trata-se, aqui, de arrancar o que se puder do governo enquanto ele tem algo a oferecer.
Dessa maneira, mais uma vez nossas instituições não se demonstram capazes de fornecer a coordenação necessária para lidar com a crescente complexidade do setor elétrico brasileiro.

Provavelmente seguiremos o circuito tradicional de desestruturação do setor, comandada por um modelo que já se exauriu, até o momento em que resolvermos mobilizar os recursos necessários para a saída da crise por intermédio da configuração de um novo modelo que deverá gerir essa mobilização.
E não estamos falando simplesmente das limitações do atual governo, ou dos anteriores, mas das recorrentes limitações do Estado brasileiro e, mais do que isso, da sociedade brasileira, na construção de instituições que garantam a sustentabilidade econômica, social e ambiental do seu setor elétrico.
Considerando o papel desse setor no desenvolvimento econômico e no bem-estar social do país, caberia olhar essa questão com uma visão que fosse mais além dos embates partidários dos períodos eleitorais em torno da paternidade dos apagões passados e daqueles que poderão ocorrer.

Renato Queiroz, ex-gerente de Furnas e da EPE, é pesquisador Associado do Grupo de Economia da Energia  do Instituto de Economia da UFRJ. 
Ronaldo Bicalho é professor e pesquisador do GEE/UFRJ

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