Opinião
Existe uma única solução para o problema da energia elétrica?
Uma política energética inteligente terá de conciliar múltiplos interesses - políticos, econômicos, sociais, ambientais - e dificilmente pode se basear em idéias simplistas, como as que pregam uma solução única e supostamente 'milagrosa', seja ela biomassa, eólica, hídrica, nuclear, solar, gás natural ou qualquer outra que entre 'na moda'.
O problema é demasiado complexo para que qualquer uma das potenciais soluções possa ser colocada como 'bala de prata'. Essa é a maior dificuldade no debate sobre energia - o da simplificação extrema das decisões e a noção perversa de que existe uma resposta simples e imediata para as dificuldades. Só quando percebermos coletivamente que não existe uma resposta única e milagrosa, e que os problemas da segurança energética, dos custos e das emissões de gases de efeito estufa não são compatíveis com esse tratamento simplista é que será possível avançar de fato no debate.
Não deve existir competição entre os energéticos disponíveis, mas sim complementaridade. Ela é a única estratégia de que dispomos para otimizar o conjugado modicidade tarifária/confiabilidade, já que o gerenciamento da expansão do sistema elétrico nacional é similar ao gerenciamento de uma carteira de investimentos: os princípios da gestão de riscos (confiabilidade) indicam uma estratégia de diversificação, no sentido de garantir a rentabilidade (modicidade tarifária).
Não existe uma fonte de energia que represente solução única sustentável a longo prazo para um país. O próprio exemplo brasileiro, cujo sistema elétrico foi inicialmente baseado apenas na fonte hídrica e que hoje passa por uma evolução, no sentido de tornar-se um sistema hidrotérmico, reforça esta tese. O caráter largamente majoritário da hidreletricidade torna o Brasil um caso único em nível mundial. É uma dádiva da natureza que, por sua vez, depende dos caprichos desta própria natureza
Um aspecto crucial dessa preponderância hídrica do sistema elétrico nacional é a evolução da capacidade de armazenamento dos reservatórios das hidrelétricas e o risco hidrológico associado a isso. O Brasil teve, desde a década de 1950, dois grandes surtos de crescimento do volume dos reservatórios: um na década de 60 e outro na segunda metade da década de 70, atingindo os primeiros anos da década de 80. Após esse período, o volume disponível dos reservatórios tem crescido apenas de forma marginal, enquanto a capacidade instalada vem aumentando em ritmo mais acelerado.
A capacidade de estocar energia nas barragens, que já foi de dois anos, estava reduzida a 5,8 meses em 2003. Um sistema hídrico que se auto-regule para enfrentar um ano seco como o de 2001 necessita de, no mínimo, cinco meses de energia hídrica armazenada. As hidrelétricas que estão programadas para entrar em operação terão razão acumulação/produção da ordem de dois meses, fazendo com que essa razão continue a cair para o conjunto das centrais hidrelétricas brasileiras.
As centrais térmicas para geração de eletricidade no Brasil não são motivadas, em um primeiro momento, pelo esgotamento do potencial hídrico, mas pela necessidade de fazer frente aos riscos hidrológicos. Essas centrais advêm da necessidade de regulação do sistema, que não vem conseguindo mais aprovação para construir os grandes reservatórios plurianuais que serviam para regulá-lo.
A imaginada complementaridade dos regimes de chuva das bacias hidrográficas brasileiras, que garantiria a auto-regulação do sistema, não é corroborada pelos dados históricos de vazões. As regiões brasileiras, com exceção da região Sul, apresentam meses de seca mais ou menos coincidentes. Os leilões de energia nova já realizados têm sinalizado de forma inequívoca o fato de o país estar passando por um divisor de águas: a situação atual de virtual monopólio da hidreletricidade no Sistema Integrado Nacional (SIN) apresenta tendência de evolução para uma situação onde o componente hidrelétrico continuará a predominar e ter precedência, mas ao lado de um importante componente termelétrico, necessário para garantir o funcionamento seguro do sistema.
A fonte hídrica permanecerá durante muitas décadas como a principal componente do portfólio de fontes de geração do sistema elétrico brasileiro. Deverá, entretanto, ser complementada por fontes térmicas - urânio, carvão, biomassa, gás natural e óleos derivados do petróleo -, nesta ordem de importância, tendo em vista os aspectos ligados a disponibilidade em território nacional, custos, impactos ambientais e usos em outras aplicações.
A desejável expansão da contribuição de outras fontes renováveis - eólica, solar, biomassa - deverá ser a maior possível dentro das limitações técnicas e econômicas específicas de cada uma delas. Essas fontes, porém, não reduzirão a necessidade da contribuição térmica. Todas as fontes renováveis dependem dos ciclos da natureza e requerem regulação para os períodos em que não estão plenamente disponíveis.
Entre as opções térmicas, o urânio não tem outro uso fora a geração elétrica. O Brasil possui a sexta maior reserva de urânio do mundo, tendo prospectado apenas um terço de seu solo - e apenas na camada superficial (100 m). Somente as cerca de 250 mil t das jazidas de Lagoa Real (BA) e Santa Quitéria (CE) corresponderiam a mais de 200 anos de operação do Gasbol em sua vazão máxima atual, caso todo o seu gás natural fosse usado para geração.
A essa riqueza de nosso solo, soma-se a riqueza intelectual conquistada pelos brasileiros. Temos o domínio de todas as etapas do ciclo de produção do combustível nuclear e capacitação em projeto, construção e operação de usinas nucleares. É um patrimônio tecnológico disponível em pouquíssimos países.
O preço do megawatt-hora gerado por Angra 3 - estimado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) e já apresentado ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) - é de R$ 138,14. É um valor inferior ao preço máximo atingido por térmicas no últimos leilões de energia (da ordem de R$ 140/MWh). O investimento por quilowatt firme a ser gerado por Angra 3 é da ordem de R$ 6.000, colocando-a dentro da faixa das novas hidrelétricas oferecidas nesses leilões (R$ 5.500 - R$ 8.500). As usinas pós-Angra 3 teriam um preço da ordem de R$ 145 por MWh gerado e investimentos da ordem R$ 6.500 por kW firme instalado.
Note-se que o custo do combustível nuclear representa cerca de 10% do preço do MWh gerado, enquanto o custo do gás natural, o principal combustível das térmicas convencionais, chega a 60%. Logo, a geração nucleoelétrica é muito menos sensível à volatilidade dos preços do combustível do que a geração térmica convencional.
Dotada de um sistema de instrumentação e controle digital, Angra 3 será construída com base nas mesmas tecnologias de mais de 30 usinas nucleares em construção hoje no mundo. Sua operação terá um impacto sócioambiental mínimo em termos de uso do solo, necessidade de novas linhas de transmissão e produção de gases de efeito estufa. Próxima aos maiores centros consumidores, terá importante contribuição para a estabilidade do sistema elétrico nacional.
Como feito com Angra 1 e Angra 2, os rejeitos gerados pela operação de Angra 3 serão armazenados de forma segura e fiscalizada em depósitos dentro da própria central nuclear ao longo de toda a sua vida útil - 60 anos. Este prazo será mais do que suficiente para que a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), responsável legal pela disposição definitiva no país, implante repositórios com base na melhor tecnologia disponível no momento em que esses se fizerem indispensáveis - providências para isso já estão sendo tomadas, em convênio com a Eletronuclear.
O Plano Decenal de Expansão de Energia do MME - PDEE/2006-2015 - prevê a operação de Angra 3 para 2013. Seu prazo de conclusão é de seis anos e meio. Fazendo as contas, estamos no momento propício para a decisão de retomada de suas obras. As objeções ambientais à energia nuclear diminuíram de intensidade nos últimos anos.
A razão principal dessa atenuação está relacionada à percepção de que o problema dos resíduos de longa duração não se restringe às usinas nucleares, mas atinge o conjunto das energias térmicas quando se inclui a emissão dos gases formadores do efeito estufa. A geração nuclear não provoca emissões diretas desses gases. A principal preocupação relaciona-se com possíveis acidentes nas usinas, motivada pelo acidente de Chernobyl, com conseqüências graves, ocorrido em 1986. Esse reator, entretanto, do tipo soviético RBMK, tem características técnicas completamente distintas dos reatores do tipo ocidental PWR, como os de Angra 1, Angra 2 e Angra 3 e os demais planejados. Por isso é impossível ocorrer um acidente semelhante aqui.
Houve ainda o acidente de Three Miles Island, nos EUA, em 1979, o mais grave que pode ocorrer num reator PWR. Neste caso não houve nenhuma morte ou contaminação de pessoas ou do meio ambiente. Isso demonstra que esse tipo de reator, com seu sistema de contenção, é plenamente seguro. A experiência operacional com reatores PWR em todo o mundo demonstra de forma inquestionável os altíssimos níveis de segurança alcançados.
A perspectiva atual, segundo o International Energy Outlook 2006, é de que haja um crescimento de 31% da geração nuclear no mundo entre 2007 e 2030. Mas esse percentual pode ser superado, dependendo dos preços dos combustíveis e do incremento da aplicação dos créditos de carbono do Protocolo de Kyoto.
Os indicadores brasileiros de consumo e capacidade instalada de geração elétrica per capita são ainda medíocres, inferiores à média mundial e correspondentes à metade dos de Portugal - este é o fato crucial a ser considerado na busca de soluções para o problema da energia elétrica. Isso obriga o país a aproveitar ao máximo - e o mais rápido possível - todos os recursos disponíveis para aumentar sua capacidade de geração, permitindo que sejam alcançados níveis de consumo compatíveis com as necessidades da vida moderna.
Leonam dos Santos Guimarães é assistente da presidência da Eletronuclear