Opinião

Causas e Consequências da Venda de Gás Boliviano Contratado pelo Brasil à Argentina

O desvio de gás contratado pelo Brasil para a Argentina é mais um episódio de desrespeito aos tratados internacionais no comércio de gás no Cone Sul, o que praticamente aniquilou a perspectiva de integração energética regional

Por Edmar de Almeida

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

Recentemente as autoridades bolivianas anunciaram um novo contrato de venda de gás para a Argentina durante o inverno de 2022. O volume de gás vendido para a Argentina está desfalcando as exportações de gás pactuadas com o Brasil, num momento em que o mercado internacional de GNL encontra-se extremamente apertado com preços em níveis nunca vistos. Aliás esta foi a principal razão que levou a Argentina a procurar a Bolívia na busca de gás mais barato que o GNL no mercado internacional.

A operação de venda de gás já contratado pelo Brasil para a Argentina tem potencial de trazer grandes prejuízos para a Petrobras, que é detentora de um contrato de longo prazo (até 2026) de importação de 20 milhões de metros cúbicos por dia (Mm³/dia). O contrato de importação de gás da Bolívia está precificado a cerca de 10% do valor do petróleo Brent (cerca de 11 dólares por MMBtu aos preços atuais do Brent), enquanto o GNL no mercado spot ronda os 25 dólares por MMBtu.

A Petrobras deixou claro que vê a redução das entregas de gás para o Brasil como uma atitude unilateral da YPFB em descumprimento do acordado no contrato. Por sua vez, os bolivianos alegam que estão cumprindo o contrato, uma vez que as multas contratuais associadas à redução das entregas de gás serão pagas.

Esta atitude do governo boliviano de buscar a melhor oferta para um gás já contratado tem gerado um grande debate na comunidade de energia no Brasil. De um lado estão os que opinam que a revenda do gás contratado pelo Brasil representa uma quebra contratual. Do outro estão os que concordam que, se os bolivianos arcarem com o custo das multas contratuais, eles têm o direito de revender o gás para quem quiser.

Diante da crise energética mundial, o debate sobre o gás da Bolívia ficou circunscrito aos especialistas de gás e não foi devidamente aprofundado. Existem duas dimensões relevantes no problema: a contratual e a política.

Com relação à dimensão contratual é importante salientar que um contrato complexo e de longo prazo como o contrato entre a Petrobras e YPFB só atinge seus objetivos se as partes estiverem com interesses alinhados. Nesta perspectiva, além do cumprimento formal do contrato, existe o cumprimento das intenções do contrato. A “Teoria dos Contratos Incompletos” deixa claro que é impossível formalizar todas as contingências possíveis em relações econômicas complexas. Assim, sempre existem lacunas nos contratos, e seu cumprimento vai muito além do respeito às regras explícitas. O desalinhamento quanto ao cumprimento das intenções do contrato tende a levar a um desgaste relacional entre as partes que invariavelmente resulta na judicialização da relação.

No contexto atual do mercado spot de GNL, praticamente todos os vendedores de gás com contratos de longo prazo no Brasil e no mercado internacional poderiam ganhar dinheiro revendendo o gás a preços mais elevados no mercado spot e pagando as multas contratuais pela não entrega do gás. Então, por que será que a maioria dos que poderiam aproveitar esta oportunidade não o faz? Exatamente porque este comportamento oportunista geraria um impacto reputacional e um desalinhamento dos interesses entre vendedor e comprador que poderia afetar a relação entre as partes para o restante da duração do contrato. As oportunidades de ganhos com as oscilações do preço internacional do GNL podem acontecer para os dois lados. Basta lembrar que em 2020 a Petrobras importou GNL a menos de 3 dólares por MMBtu, ao mesmo tempo em que continuou importando gás da Bolívia a 6 dólares por MMBtu.

A dimensão política não é menos importante. Diferentemente das importações de GNL, a compra de gás importado através de um gasoduto internacional gera uma grande interdependência entre os países. Por isso, esta relação comercial está ancorada em acordos internacionais. Estes acordos estabelecem garantias políticas para os contratos. Ou seja, são garantias de que as mudanças políticas internas nos países não vão afetar uma relação comercial cuja duração vai muito além dos mandatos políticos.

A venda de gás já contratado pelo Brasil para a Argentina representa certamente uma ruptura dos princípios políticos da relação Bolívia-Brasil no mercado de gás. Curiosamente, o governo brasileiro não deixou este ponto claro para os bolivianos até o momento. O silêncio do governo brasileiro sobre esse assunto surpreende ainda mais quando se considera que os custos adicionais enfrentados pela Petrobras para a compra de GNL para substituir o gás boliviano não entregue serão eventualmente repassados aos consumidores de gás.

Mesmo que o governo brasileiro mantenha sua posição política, certamente o desvio do gás contratado pelo Brasil para a Argentina terá consequências para o futuro das exportações de gás bolivianas para o mercado de gás no Brasil. Por um lado, a Petrobras e a YPFB ainda terão pela frente quatro longos anos de contrato para gerenciar, com elevado risco de comportamento oportunista dos dois lados. Por outro lado, esse episódio deixou claro para outros potenciais compradores brasileiros que o cumprimento pelos bolivianos das intenções dos contratos de longo prazo dependerá das condições de mercado. Neste sentido, as negociações das cláusulas contratuais para evitar comportamentos oportunistas serão mais complexas, o que tornará mais difícil para a Bolívia vender gás através de contratos de longo prazo.

O desvio de gás contratado pelo Brasil para a Argentina é apenas mais um triste episódio de desrespeito aos tratados internacionais no comércio de gás na região do Cone Sul. Desde que a Argentina decidiu cortar unilateralmente as exportações de gás para o Chile, Uruguai e Brasil em 2004, nenhum novo gasoduto internacional foi construído na região. A falta de compromisso político com os contratos assinados de compra-venda de gás praticamente aniquilou a perspectiva de integração energética regional e todos os países decidiram investir em plantas de regaseificação para se integrar ao mercado internacional de GNL.

 

Edmar de Almeida, professor (licenciado) do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do IEPUC. É economista, mestre em Economia Industrial e doutor em Economia Aplicada pelo Instituto de Política Energética e Economia da Universidade de Grenoble, França. Desde 1993, professor Edmar dedica-se ao ensino e à pesquisa em economia energética, com especial interesse em organização industrial e na dinâmica da indústria energética, regulação e política energética e inovação tecnológica e seus impactos nos mercados de energia.

Outros Artigos