Opinião
Crise internacional do gás: quais saídas e em quanto tempo?
A curto prazo o reequilíbrio do mercado mundial de gás depende mais do comportamento da demanda, ou seja, de uma eventual recessão da economia
As causas da crise do gás são bem conhecidas. Por um lado, a redução do crescimento da oferta de gás em função da pandemia, fazendo com que a oferta não acompanhasse a recuperação da demanda em 2021; e por outro a guerra da Rússia com a Ucrânia que levou a uma forte redução das exportações russas para a Europa, obrigando a Europa a disputar a já escassa oferta mundial de GNL com a Ásia. Esta crise se agravou nas últimas semanas. Na sexta-feira dia 25 de agosto, o preço do contrato de gás para setembro no mercado futuro do TTF atingiu os inimagináveis 99,7 dólares por MMBtu. Por sua vez, os preços dos contratos futuros de outubro de 2022 a março de 2023 ultrapassaram a barreira dos 100 dólares por MMBtu, enquanto o preço do JKM fechou em 68 dólares por MMBtu.
Este patamar de preços não apenas é inédito. Eles mostram que o mercado de gás perdeu a referência com os outros combustíveis neste momento. Isto significa que existem agentes dispostos a pagar um preço pelo gás que não tem relação com o seu valor energético intrínseco. Para se ter uma ideia, o preço de equivalência energética do gás natural com o petróleo seria de 16,53% do preço do Brent (isso porque 1 MMBtu de gás natural tem a mesma energia que 0,1653 toneladas de petróleo). Ou seja, se o petróleo está em 100 dólares o barril, o preço do gás não deveria superar os 16,53 dólares por MMBtu, pois a partir deste patamar é mais barato queimar óleo combustível que o gás. O patamar de preços atual mostra que a referência agora é o custo do déficit. Ou seja, o cálculo que os consumidores e/ou os governos estão fazendo é qual é o valor da alternativa, e neste momento a alternativa é ficar sem aquecimento no próximo inverno.
É evidente que o atual patamar de preços não é sustentável por qualquer ótica que se avalie. Neste patamar de preços, as contas de gás dos consumidores finais são impagáveis e os governos são forçados a criar subsídios, com elevados custos fiscais. A maioria dos países europeus implementou medidas para blindar os consumidores do choque do gás. Mas, os subsídios trazem dois problemas. O primeiro é o aumento do desequilíbrio fiscal e as suas implicações para a inflação e elevação dos juros. De acordo com o FMI, o custo fiscal dos subsídios energéticos até julho atingiu 1% do PIB nos países europeus de renda alta e 1,7% do PIB nos países de baixa renda. Este custo pode aumentar exponencialmente se os atuais patamares de preços se mantiverem nos próximos meses. O segundo é que os preços deixam de ser um sinal para o comportamento do consumidor, que continuará consumindo o gás mesmo com os preços de gás em patamares extraordinariamente elevados.
Mas, quais são as saídas e quanto tempo pode demorar o reequilíbrio do mercado de gás? Basicamente, dois fatores podem afetar o balanço oferta e demanda de gás no mundo. O primeiro é o impacto que a crise do gás pode ter sobre a macroeconomia mundial. Se a economia mundial e, em particular a europeia e a chinesa, caminhar para uma recessão, o crescimento da demanda de gás pode se reduzir. A demanda mundial de gás vem crescendo em média a 2,1% ao ano nos últimos 10 anos, o que representa um crescimento anual de cerca de 100 bilhões de metros cúbicos (bmc). A destruição de demanda pela recessão pode ser um vetor poderoso para reequilibrar o mercado de gás.
Outro fator é o crescimento da oferta de GNL. Isto porque, o ponto focal do desequilíbrio é a Europa, onde os cerca de 160 bmc de gás importados por gasoduto da Rússia deverão ser substituídos por GNL, pois a única forma de levar mais gás para a Europa no curto e médio prazos é através do GNL. A oferta mundial de GNL tem crescido a um ritmo de aproximadamente 20 bmc ao ano nos últimos 10 anos. Ou seja, mesmo com uma aceleração forte do crescimento da oferta de GNL, o ajuste demoraria muito tempo se depender apenas do aumento da oferta de GNL.
Podemos tirar algumas conclusões sobre a crise atual do mercado mundial de gás: i) tudo indica que o reequilíbrio do mercado mundial será mais lento que o esperado inicialmente; ii) a curto prazo este reequilíbrio depende mais do comportamento da demanda mundial de gás, ou seja, de uma eventual recessão da economia mundial; iii) quanto mais demorar o ajuste, maior a probabilidade de que os preços elevados nos mercados spot europeu e do GNL contaminem o restante dos mercados mundiais de gás, já que estes preços serão vistos como custo de oportunidade para novos contratos.
Neste sentido é fundamental decifrar a crise do mercado mundial de gás e se preparar para os seus efeitos na economia e no setor de energia. O mercado de gás está navegando em águas desconhecidas.
Edmar de Almeida, professor (licenciado) do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do IEPUC. É economista, mestre em Economia Industrial e doutor em Economia Aplicada pelo Instituto de Política Energética e Economia da Universidade de Grenoble, França.