Opinião
Etanol = gasolina + crédito de carbono – O Artigo 6 e o futuro do etanol
Muitos países já se convenceram das vantagens do etanol para uso industrial ou como blend para combustíveis fósseis. Mas como precificar esse energético? Como escapar de momentos em que os preços de milho ou de açúcar disparam?
Na última coluna do ano, volto a um dos meus temas preferidos – o papel do etanol na descarbonização global.
Recapitulando artigos recentes: o etanol é uma solução brasileira sim, com carros que rodam 100% com esse combustível, enquanto no resto do mundo o comum é ser usado misturado à gasolina. Na comparação “well to wheel”, incluindo todos os elos da cadeia desde a produção do veículo e das baterias, bem como da energia elétrica que move o veículo, o carro a etanol no Brasil emite menos gases de efeito estufa que um carro elétrico. Essa vantagem aumenta em países onde a matriz de geração elétrica tem base em carvão ou mesmo gás natural.
Já a eletrificação de frota é uma tendência global mas, no caso do Brasil e de outros países específicos, os investimentos necessários em geração e infraestrutura, fora o custo do carro elétrico em si, não parecem encaixar na realidade socioeconômica do país no curto/médio prazos. No entanto, esta eletrificação poderia se dar na forma da célula de combustível, usando o hidrogênio do próprio etanol.
Por fim, dada a urgência do tema e o tamanho do desafio, seria no mínimo uma simplificação acreditar que existe uma solução mágica e universal para a redução de emissões em transportes. O mundo precisa reduzir emissões em 45% até 2030 com soluções existentes e viáveis, não tem como esperar. Não por acaso estamos falando da década da ação. Portanto, o etanol certamente tem um papel a desempenhar, especialmente em setores como aviação ou transporte marítimo em que a recarga seria inviável.
Muitos países já se convenceram das vantagens do etanol para uso industrial ou como blend para combustíveis fósseis. Já é possível produzir SAF, ou sustainable aviation fuel, a partir do etanol. Locomotivas híbridas como as que rodam no Brasil, com um motor a diesel que alimenta um gerador elétrico dentro do veículo, poderiam em tese rodar com etanol.
Mas como precificar esse energético? Como escapar de momentos em que os preços de milho ou de açúcar disparam? Mais ainda, como se proteger da volatilidade dos preços das commodities agrícolas, em negócios correlacionados com preços de petróleo ou preços de energia, se não existe um mercado líquido ou uma referência de preço como NY11 para o açúcar ou Brent para o petróleo, que permita às empresas fazerem hedge de suas posições? Sempre é bom lembrar que a própria volatilidade dos preços das commodities agrícolas tem sido exacerbada pelas mudanças climáticas causadas pelas próprias emissões.
É aqui que entra a regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris. De forma simples, o objetivo principal desse artigo é estabelecer mecanismos claros para negociação internacional de créditos de carbono, de forma que esse incentivo financeiro à redução de emissões possa realmente cruzar fronteiras. Esse movimento tem dois desafios básicos: a certificação padronizada dos créditos, diferenciando inclusive a fonte do crédito e seu impacto efetivo, bem como evitar a chamada “dupla-contagem” do benefício entre países.
Se de fato a regulamentação desse artigo e o consequente estabelecimento de um mercado global e líquido de créditos de carbono virar realidade, estaremos criando, indiretamente, liquidez para o mercado de etanol ou para os preços futuros deste energético. O raciocínio é bem simples: se a substituição de gasolina por etanol gera uma redução de emissões de carbono que teria que ser compensada pelos consumidores do combustível fóssil de alguma forma, podemos dizer que preço de etanol = preço da gasolina + crédito de carbono. Sendo assim, se o mercado de gasolina futuro tem liquidez e se o mercado de créditos de carbono ganha corpo com a regulamentação do artigo, podemos dizer que a soma dos dois, e portanto a precificação de etanol, passa a ter liquidez em mercados futuros. Tanto compradores quanto vendedores de etanol poderão ter melhor visibilidade dos preços futuros e até mesmo "hedgear'' suas compras ou vendas.
Melhor ainda, através do incentivo financeiro que vem da venda dos créditos, teremos maior estímulo ao desenvolvimento do etanol em países com tradição de produção de cana-de-açúcar, como a Índia, que enfrenta problemas gravíssimos de poluição das suas grandes cidades, a China e a Tailândia. Não só seria possível estimular a produção de etanol nesses países e em outros, reduzindo emissões, como também diversificar a oferta de etanol mundo afora, o que resolve uma outra questão tratada de forma menos clara – muitos países não querem correr o risco de depender exclusivamente de um determinado país para o suprimento de combustíveis ou energia, especialmente quando o país em questão atravessa períodos de maior incerteza política interna ou externa.
Essa discussão pode soar muito simplista dada a dificuldade de implementação e escalabilidade do conceito, sem falar no desafio de implementação do Artigo 6 por si só, e toda a questão política que gira no entorno do incentivo ao uso de energia renovável. Nada como uma tese simples, baseada em racionalidade e sinais econômicos corretos para criar um círculo virtuoso e sustentável de desenvolvimento! Boas festas e até o ano que vem.
Paula Kovarsky é Head of US Office e diretora de Relações com Investidores da Cosan desde 2015, com mais de 20 anos de experiência no setor de Óleo & Gás