Opinião

O milagre da eletrificação

Se o mundo indiscutivelmente acordou para a urgência de agir para reduzir as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, assusta ainda a forma generalista como muitas vezes a busca por soluções é tratada

Por Paula Kovarsky

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Não é a primeira vez que escrevo nesta coluna sobre o papel do etanol na descarbonização global. Mas, se o mundo indiscutivelmente acordou para a urgência de agir para reduzir as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, diante dos riscos gigantescos de elevação da temperatura do planeta caso isso não aconteça, assusta ainda a forma generalista como muitas vezes a busca por soluções é tratada. A meu ver existem algumas boas explicações para isso.

A primeira delas tem a ver com desconhecimento de causa sobre a real dimensão do problema. Os desafios de conter as mudanças climáticas são simplesmente gigantescos em todos os aspectos (científico, tecnológico ou financeiro), e variam de acordo com a diversidade das matrizes energéticas e das prioridades socioeconômicas mundo afora.

Alguns números ajudam a ilustrar. A eletrificação da frota leve americana custaria US$ 7.5 trilhões, sem contar o investimento em infraestrutura de geração de energia elétrica; na Europa, a conta chega a US$ 6.9 trilhões.

Se todos os carros virassem elétricos e todas as termoelétricas e caldeiras fossem desligadas amanhã, a demanda global por derivados de petróleo seria de cerca de 100 milhões de barris por dia (cerca de 65% da demanda global em 2019), nos chamados hard-to-abate-sectors, incluídos aí aviões, caminhões, navios e outras indústrias, como a petroquímica. No caso brasileiro, o custo seria da ordem de US$ 1.2 trilhão só na renovação da frota. Se convertêssemos todo o uso de combustíveis fósseis para transporte em consumo de energia elétrica, teríamos que aumentar a capacidade de geração do país em quase 50%.

É perda de tempo argumentar que precisamos de todas as alternativas disponíveis, e que os biocombustíveis terão um papel extremamente relevante nessa jornada. Estimativas apontam para demanda global de 3,5 bilhões de litros de biocombustíveis só para aviação em 2025, e isso representa menos de 10% do consumo de combustíveis deste mercado em 2019.

Ao menos em tese, contra dados não há argumentos. Por que então tanto se fala no “milagre da eletrificação” em um país como Brasil, que já tem hoje uma solução provada como o etanol, que emite menos gases de efeito estufa que um carro elétrico, se compararmos toda a cadeia, incluindo a manufatura dos veículos e das baterias, além do consumo de energia elétrica? E atenção: essa comparação vale num país onde energias renováveis respondem por 83% da geração. Nem discutimos, por exemplo, sobre o etanol de segunda geração, ou celulósico, que é 50% menos poluente que o etanol convencional. E qual seria a justificativa para priorizar a eletrificação de frota num país com tantas outras prioridades básicas?

Mas a turma não desiste, chegando a argumentar, de forma negacionista, contra uma tendência global. Alegam que todas as montadoras do mundo estão anunciando o fim da produção de carros a combustão ao longo da próxima década, e que, portanto, se o Brasil não se mexer, voltaremos aos anos 1980, antes da abertura de mercado, com uma frota desatualizada e sucateada. Mais uma afirmação que se enquadra como desconhecimento de causa.

Um carro elétrico não necessariamente precisa ser um carro com uma bateria como conhecemos. Um carro a hidrogênio, que utiliza uma célula de combustível, é também um carro elétrico. Essencialmente, estamos falando de uma reação química que usa o hidrogênio e é transformada em energia por meio da geração de uma corrente elétrica, sendo dois eletrodos separados por um isolante e conectados por meio de um circuito externo, expostos a um fluxo para suprir os reagentes - no caso, o combustível e o oxidante. A produção de hidrogênio por eletrólise da água é muito intensa em energia, e seu transporte é extremamente perigoso. Mas a tecnologia de separação do hidrogênio por meio de reação química a partir de hidrocarbonetos como carvão (hidrogênio cinza), gás natural (hidrogênio azul) e etanol (hidrogênio verde) já existe e vem avançando a passos largos em termos de custo.

Um carro movido a hidrogênio numa célula de combustível, extraído do etanol através de um separador ou “reformer” embarcado no veículo, já é uma realidade, sendo possível utilizar toda a capacidade de produção e distribuição deste combustível num futuro relativamente próximo. A cereja do bolo: a estrutura e, portanto, a linha de montagem de um carro a hidrogênio e de um a bateria é praticamente a mesma, excluindo a “caixinha” que gera a energia, e o peso do “reformer” com a célula de hidrogênio é quase 10 vezes menor que o da bateria.

Entendendo o tamanho do desafio, achar que existe uma solução única, uma varinha mágica que resolve o problema do aquecimento global no mundo me parece, no mínimo, uma simplificação. É preciso entender as particularidades da matriz energética e a vocação natural de cada país nessa jornada, sem diminuir, obviamente, o compromisso que precisa ser de todos. Mas apostaria um belo almoço que o Brasil vai pular direto do etanol, que no curto prazo resolve muito bem para a frota leve a questão de emissões de gases de efeito estufa, para o carro movido a hidrogênio verde. Saber aproveitar a combinação de duas de suas maiores fortalezas, o agronegócio e a energia limpa, por meio dos biocombustíveis são um privilégio do Brasil, não uma negação!

Paula Kovarsky é Head of US Office e diretora de Relações com Investidores da Cosan desde 2015, com mais de 20 anos de experiência no setor de Óleo & Gás

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