Opinião
Sintomas da governança do setor elétrico indicam risco de colapso
No final de 2023, um decreto do governo estatizou a CCEE, enquanto o ONS também está aparelhado, com novos diretores indicados pelo governo. Assim a governança do setor elétrico vai sendo anestesiada, tornando-se disfuncional
Os impactos de eventos climáticos extremos sobre o funcionamento do setor elétrico são explícitos e ficam facilmente evidenciados, por exemplo, quando ocorrem apagões após fortes chuvas. As consequências da aprovação irresponsável de subsídios no Congresso Nacional são sentidas imediatamente pelos consumidores quando pagam a conta de luz ou quando os preços dos produtos e serviços sobem. Mas se o assunto é governança, os sintomas acabam mascarados e as alterações nos sinais vitais do setor são menos evidentes.
Como uma espécie de sistema nervoso central, a operação e a organização das instituições do setor elétrico estão interligadas. Qualquer descompensação em uma dessas instituições compromete o todo e, neste momento, detectamos uma espécie de infecção generalizada.
No final de 2023, um decreto do governo estatizou a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Nos últimos dias, a CCEE aprovou seu novo estatuto social, com seis integrantes na diretoria e o aumento de 5 para 8 no número de assentos no Conselho de Administração. O Ministério de Minas e Energia tem direito a 4 indicações no conselho e conta com o voto de minerva. “A CCEE é a casa do mercado, pois aqui todos se encontram, dialogam e evoluem seus negócios”, diz o site da instituição. Mas agora o governo é quem vai dar as cartas para o mercado.
Por sua vez, o Operador Nacional do Sistema (ONS) também está aparelhado, com novos diretores indicados pelo governo, alguns, inclusive, e egressos dos gabinetes do Ministério de Minas e Energia. O sistema elétrico mudou suas premissas de operação nos últimos anos, ganhou maior complexidade, passou a ter que conciliar hidrelétricas, térmicas, solares, eólicas, novas fontes intermitentes e não despacháveis. A complexidade só aumenta, ainda que tenhamos a boa notícia de contarmos cada vez mais fontes renováveis. Mais do que nunca, o ONS precisa ser conduzido por profissionais escolhidos a partir de critérios técnicos, não indicações políticas.
Na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), por sua vez, ouvimos com recorrência as queixas de falta de pessoal, de defasagem na estrutura, o que dificulta sua atuação na fiscalização e na regulação do setor. A Aneel tem um bom quadro técnico, mas precisa se provar a todo instante e tem seu trabalho questionado pelo Congresso Nacional. O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 365 é um exemplo do quanto, por motivações políticas, deputados e senadores querem passar por cima de decisões regulatórias para impor medidas de interesse imediato de suas bases eleitorais, sem qualquer embasamento técnico, comprometendo a segurança jurídica e previsibilidade regulatória do setor.
Enquanto isso, o Ministério de Minas e Energia segue conduzindo o sistema elétrico como aquele médico que mal olha nos olhos do paciente, que receita apenas tratamentos paliativos e, no final, lhe entrega um receituário em letra ilegível. O setor não tem visibilidade dos caminhos que estão sendo seguidos e propostos. Questões de ampla repercussão, como as negociações do Tratado de Itaipu, são tocadas sem transparência e com informações desencontradas.
Enquanto uma série de questões relevantes é negligenciada, tenta-se reinventar a roda. O decreto da renovação das concessões traz a proposta de criação de uma Rede Nacional dos Consumidores de Energia Elétrica (Renacon). É um equivalente ao Conselho Nacional de
Consumidores de Energia Elétrica (Conacen). A diferença é que este é uma entidade de direito privado, da sociedade civil organizada, enquanto a Renacon terá sua composição, competência e funcionamento definidos por ato ministerial. Mais uma sutil estatização.
Assim, a governança do setor elétrico vai sendo anestesiada, tornando-se disfuncional, perdendo efetividade, senso crítico e diálogo.
Como já temos alertado, não podemos mais postergar a realização de uma ampla reforma setorial. Os desafios climáticos são outros agora, nossa matriz elétrica mudou, o comportamento dos consumidores e produtores de energia é diferente e, para dificultar ainda mais, nossas instituições setoriais estão se enfraquecendo e confundindo seus papéis.
Se não tratarmos urgentemente esse quadro que temos hoje, o Setor Elétrico Brasileiro entrará em colapso.