Opinião

Análise dos leilões das usinas do rio Madeira

Por Redação

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As duas usinas do rio Madeira são o primeiro e decisivo movimento no avanço da fronteira elétrica na região da Amazônia, onde se localiza um potencial estimado em 100 GW. Os surpreendentes resultados dos dois leilões definiram um novo e promissor parâmetro tarifário para a economia brasileira.

O leilão de Santo Antônio teve como ganhador o consórcio favorito, comandado pela Odebrecht. O leilão de Jirau apresentou resultado inesperado, pelo consórcio ganhador e pela tarifa proposta, determinada por uma postura inovadora e criativa, baseada em projeto diferente do original que possibilitou redução de R$ 1 bilhão no custo da obra. O consórcio favorito, mas perdedor, inconformado com o resultado, vem questionando na Justiça esse resultado, o que pode atrasar o início das obras e trazer sérios problemas ao sistema elétrico brasileiro. Para entender esta posição, devem-se examinar as origens desse projeto estratégico.

O projeto do rio Madeira remonta aos anos 90. Era a época de privatização do setor elétrico, e os investimentos em geração das estatais estavam praticamente interrompidos. A prioridade do modelo era vender os ativos do Estado, usando os recursos para o ajuste macroeconômico executado pelo Ministério da Fazenda. Os novos investidores foram estimulados a comprar ativos prontos e com fluxos de caixa previsíveis, basicamente na distribuição. Os ativos de geração também seriam privatizados, mas a piora nas condições de mercado e as dificuldades de definição de um marco regulatório restringiram a privatização na esfera federal às usinas da antiga Eletrosul.

Em 2001, foi formado consórcio entre Odebrecht e Furnas com o objetivo de realizar os estudos de aproveitamento do potencial hidrológico do rio Madeira. Para Furnas, o projeto do Madeira era uma forma de sobrevivência como uma empresa estatal e verticalizada. Para a Odebrecht, empresa cujo core business é a construção de grandes obras, era uma oportunidade de um novo negócio, já que a construção de novas hidrelétricas estava praticamente paralisada pela lógica da privatização.

Com a reestruturação do modelo do setor elétrico, iniciada em 2003/2004, foram definidas regras para os leilões de novas usinas, que passaram a incluir a venda da energia para as distribuidoras em contratos de longo prazo, viabilizando e garantindo o financiamento da construção. As novas regras tornaram possível o avanço dos empreendimentos do Madeira, projetos que, pelo porte, são totalmente dependentes de financiamento de longo prazo.

A partir deste novo marco regulatório, o problema para a realização dos leilões no Madeira passou a ser a legislação ambiental. Uma nova legislação havia sido criada pela Constituição de 1988, mas ainda não havia sido aplicada e "testada"no setor elétrico em um conjunto de obras de tamanha envergadura e numa região ambientalmente tão sensível como a Amazônia. O consórcio Odebrecht-Furnas, e depois a EPE, desenvolveram esforços no sentido de atender todas as inúmeras e crescentes demandas do Ministério do Meio Ambiente. Vale assinalar que à frente deste ministério estava uma ambientalista, que havia vivido e sofrido com as devastações ambientais da região amazônica. Além disto, ONGs, Procuradorias Públicas estaduais e federal e outras entidades posicionavam-se contra a construção das primeiras UHEs na Amazônia.

Os desafios ambientais foram sendo superados com a atuação do Ministério de Minas e Energia e da Casa Civil. A preocupação central do governo estava no descompasso entre o crescimento do consumo de eletricidade e o ritmo lento de ampliação da capacidade instalada, sobretudo tendo em vista os problemas de abastecimento de gás natural para geração termelétrica.

Em paralelo a essa verdadeira corrida de obstáculos, o consórcio comandado pela Odebrecht foi montando, gradativamente, um plano de negócios do tipo monopolista. As evidências baseiam-se, sobretudo, nos contratos de exclusividade firmados com empresas de projetos, produtores de equipamentos, sistema bancário e mesmo com o Grupo Eletrobrás. Neste caso, somente Furnas poderia participar do leilão, o que impedia contratualmente que as outras subsidiárias da Eletrobrás pudessem participar de outros consórcios.

No entanto, com os sucessos obtidos nos leilões de energia nova, o governo buscou criar condições de concorrência para as usinas do Madeira, objetivando a modicidade tarifária. A estratégia central foi viabilizar a criação de novos consórcios tendo na base de cada um deles, e como fator de atração aos parceiros privados, as subsidiárias do Grupo Eletrobrás - Chesf, Eletrosul e Eletronorte. Quando estes consórcios formados iniciaram as negociações visando a elaboração dos planos de negócios, esbarraram em práticas anticompetitivas, via contratos de exclusividade.

Nesse ponto, uma batalha jurídica e política foi desencadeada por MME, SDE, Cade e Aneel. A resistência da Odebrecht foi grande, levando-a, inclusive, a abrir um processo na Justiça dos EUA contra a quebra dos contratos de exclusividade com as multinacionais produtoras de equipamentos. O processo foi indeferido em primeira e única instância, e a Odebrecht teve de aceitar a concorrência, abrindo mão desses contratos.

Em paralelo à disputa judicial, outra questão se colocava para o governo: o projeto de engenharia e os custos estimados com base nos estudos de viabilidade realizados pelo consórcio Odebrecht-Furnas. As evidências revelam que, na definição dos projetos e dos custos de construção, prevaleceu o interesse da construtora líder do consórcio. Como parte relevante do lucro esperado pela Odebrecht é diretamente vinculado ao valor da obra, o consórcio deve ter superestimado o valor do investimento. Esta hipótese pode ser comprovada em relação a cada uma das UHE.

O projeto original de Santo Antônio, segundo estimativas preliminares, teria preço-teto em torno de R$ 160/MWh. Graças ao estudo alternativo elaborado pela EPE o preço-teto foi reduzido para R$ 122/MWh. Realizado o leilão, em dezembro de 2007, o consórcio da Odebrecht ganhou com R$78, valor que surpreendeu todo o setor elétrico. Ainda que não seja correto comparar o preço original (R$ 160) com o final - pois o primeiro não levava em conta os 30% da energia vendida no mercado livre, nem a antecipação da operação -, o deságio foi superior a 50%. Esses dados fortalecem a hipótese da superestimação do custo da obra.

Mesmo sugerindo valores muito elevados para o custo do empreendimento no projeto que veio a público, o consórcio da Odebrecht tinha conhecimento acumulado em seis anos, frente aos seis meses dos concorrentes. Somente este diferencial tirava dos concorrentes a capacidade de competir em nível de igualdade. Ou seja, havia uma assimetria de informação, que agia como uma barreira à entrada dos competidores.

No entanto, merece ser destacada a suposição de que, no lance agressivo de deságio de Santo Antônio, poderia estar embutido um ganho de escala com a construção simultânea de Jirau. E a partir desta suposição, a Odebrecht deve ter incorrido no "vício de ofício" do EPC: ao definir, elaborar e precificar o projeto de Jirau, a opção foi pela obra mais cara. Este "vício", o viés de superestimação do custo do empreendimento, foi o fator determinante para a derrota da Odebrecht em Jirau.

Uma pergunta deve ser feita: como a opção do projeto do consórcio vencedor - Suez Energy (51%), Chesf, Eletrosul e Camargo Corrêa -, bem menor em termos de engenharia de barragens, não foi estudada e considerada, estando a menos de 10 km de distância do local originalmente determinado para Jirau?

A antecipação do término da obra em relação ao contrato de venda para o mercado cativo irá permitir a venda de energia no mercado livre, determinando uma melhora no fluxo de caixa e diminuindo ainda mais o custo do empreendimento. Estes fatores estão na base da vitória do consórcio comandado pela Suez Energy, empresa focada na produção e comercialização de energia elétrica, e não na construção de hidrelétricas.

A reação da Odebrecht de levar a disputa para a esfera judiciária fortalece a hipótese de que pode haver um cálculo de custo e de lucro cruzado entre os dois empreendimentos. De início a companhia questionou o resultado na Aneel, argumentando falta de documentos e certidões, e perdeu. Tudo indica que a Odebrecht pretenda questionar na Justiça comum a nova localização da usina. O argumento é que a nova localização fere o edital e exigiria novos estudos de impacto ambiental. É difícil crer que uma usina distante menos de 10 km do projeto original possa apresentar problemas novos e insolúveis de impacto ambiental. Quanto ao edital, apenas dois aspectos têm de ser considerados: a energia assegurada do empreendimento não pode ser alterada e não pode haver impactos para a usina de Santo Antônio.

No que se refere aos consumidores, o novo projeto é mais vantajoso, pois irá garantir energia elétrica a R$ 71,40/MWh por 30 anos, valor bem abaixo do proposto pelo consórcio perdedor. Dificilmente as diferentes instâncias do governo irão aceitar, passivamente, esses questionamentos da Odebrecht e os possíveis atrasos na construção da usina. A solução será pela homologação do consórcio vencedor, prevalecendo assim o interesse da sociedade brasileira, e não o de uma EPC.

 

* Nivalde José de Castro é professor do Instituto de Economia (IE) da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) Roberto Brandão é pesquisador Sênior do Gesel

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