Opinião

Cauchy e a garantia física de hidrelétricas

Por Jerson Kelman

Por Redação

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

Durante o meu exame de qualificação para o doutorado, um dos membros da banca, o professor Duane Boes, propôs que eu calculasse a variância de uma variável aleatória com distribuição Cauchy. Era uma “pegadinha”: embora a função densidade de probabilidade Cauchy seja simétrica e lembre um sino (como Gauss), não tem variância definida. Suei frio tentando resolver a questão que - só depois vim saber - se constituía em mais um round entre Boes e o professor Vujica Yevjevich (o meu orientador) em torno de uma disputa de natureza filosófica. Discutiam se a variável Cauchy seria ou não relevante no estudo dos fenômenos hidrológicos. Ao final do exame, aliviado por ter alcançado sucesso, pensei que nunca mais teria que lidar com o assunto.

Mas eis que, algumas décadas depois, Cauchy voltou a cruzar a minha vida. Foi quando li a Portaria 463/2009, do MME, que estabelece as condições para modificação da garantia física de hidrelétricas: a retificação ocorre se a geração média nos primeiros 48 meses de operação comercial for inferior a 80% ou superior a 120% da garantia física; idem se a geração média nos primeiros 60 meses for inferior a 90% ou superior a 110%. A intenção do governo parece clara: uma PCH que produza significativamente menos do que seu “valor de placa” por culpa do empreendedor – seja porque a geração média foi propositadamente super estimada na fase de projeto, seja porque a O&M deixou a desejar – é uma usina que pega carona na produção das demais e adiciona risco ao sistema.

Todavia, é possível que a geração média fique fora do intervalo definido. Não por efeito de algum comportamento criticável do empreendedor, e sim por mera variação amostral (afluência média no período de observação inferior à do registro histórico utilizado no projeto). Seria algo análogo a um resultado falso positivo num exame de laboratório clínico.

Embora um resultado falso positivo possa causar sofrimento em quem for erroneamente identificado como portador de doença grave, nem por isso a solicitação de exame, como procedimento médico, deve ser descartada. É essa sistemática que permite o tratamento precoce nos efetivamente infectados e limita a disseminação da doença.

No caso concreto, nos interessa estudar a variável aleatória Z, definida pela razão entre duas outras variáveis aleatórias: Z = X/Y, onde X é a geração média ao longo do período de observação do funcionamento da usina e Y é a geração média que teria ocorrido ao longo da série histórica de vazões (tipicamente 30 anos). Interessa saber qual a probabilidade de que Z caia fora do intervalo (0,8 - 1,2), no caso de quatro anos de observação, ou fora do intervalo (0,9 - 1,1), no caso de cinco ou mais anos.

Supondo que a usina tenha queda constante, X e Y são variáveis aleatórias aproximadamente normais (teorema do limite central). Se tanto X quanto Y tivessem valor esperado nulo, Z teria a distribuição Cauchy. Definindo-se X como a vazão média no período de observação de m anos e Y como a vazão média do histórico de h anos, tem-se que os valores esperados de X e de Y são idênticos a µ ≠ 0, e as correspondentes variâncias são σ2/m e σ2/h. Nesse caso a distribuição de probabilidades de Z é uma generalização da distribuição Cauchy (http://en.wikipedia.org/wiki/Ratio_distribution#Gaussian_ratio_distribution).

Com esse resultado, é possível calcular a probabilidade de um resultado “falso positivo” para diferentes situações. Por exemplo, a probabilidade que o empreendedor seja injustamente punido é de 31% quando a série histórica for de 30 anos, o período de observação de quatro anos, e o coeficiente de variação (σ/µ ) igual a 0,8. Não parece razoável!

Esse resultado sugere que o MME deveria reexaminar o assunto, preservando o princípio que norteou a portaria, mas limitando a probabilidade de “falso positivo” a 5%. Ou, melhor ainda, poderia utilizar os resultados do competente estudo da PSR Consultoria (Market Report) para produzir uma nova portaria que leve em consideração o valor esperado do custo extra que os geradores honestos terão de arcar para prevenir a possibilidade de um resultado falso positivo.

Outros Artigos